Roberto Gamito
21.12.21
Não pretendo levar-vos pela mão em excursão à minha vida íntima, isso deixo para os outros, despojados de mundo interior e imaginação. Que coordenadas são estas, afinal? Primeiro, o instante sugere-me a harmonização com o alheio, o corpo estrangeiro — quer dizer, a carne cantante — aproxima-se com a sua coreografia. Quão ridícula e vasta é a impotência das palavras face à carne em ebulição? Antes, uma noite vertical, de seguida, a vida despontante. E enquanto isso, dando o salto do episódio para o seu rescaldo, o meu mito desenvolvia-se no percurso no decorrer do qual inspeccionava cadáveres míticos. Qual sucateiro lírico, ficava com as partes que me interessavam e desprezava o resto. Cabeça de Medusa: um clássico. Prepúcio de Jesus: outro.
Terminada a relação sem deixas dignas de figurar em película, a vida escorraçou-me da província do amor, qual Adão expulso do Paraíso, mergulhei em apneia na minha mortalidade, porventura chateado com a farsa da luz, e tornei-me criatura dos abismos. Aprendi com os peixes o gigantismo, a lentidão e a bizarria. O fundo do oceano introduziu-me nos bastidores da morte. Povoado de carcaças de mastodontes, os quais serviam de apartamentos para famílias de polvos albinos, o oceano era um sítio onde é impossível semear um novo amor.
Ficara evidente que eu não fora capaz de aprender nem a civilizar o negrume que se apossou de mim. Bastava ouvir o nome dela para entrar em transe qual xamã siberiano possuído por uma nuvem de espíritos. O que tinha eu em mente? Um novelo de mundos abortados? Um formigueiro de derrocadas? Não tenho dúvidas de que a morte me liquidaria se acaso farejasse em mim um pingo de futuro. Felizmente não é o caso.