Roberto Gamito
06.05.21
Eu era a nota de rodapé respirando em letra miúda em romance alheio. Na grande tômbola do destino, fui amamentado a horas certas e sombrias pelo desnorte durante décadas. Entretanto, fui giro para algumas, recto para alguns, obtuso para os demais. Pautei a minha vida de forma a escorraçar os ângulos mortos da minha língua, ao passo que tu, pobre leitor de dedo nervoso no gatilho da interpretação, só te embeiças pelo teu magro reflexo. Não obstante, como que abençoamos a nossa ração de promessas quebradas. Não fosse a cólera a singularizar o homem e seríamos fotocópias uns dos outros.
Ícaro está morto, a queda está viva. É-se amado em qualquer lugar, mas primeiro é preciso aprender a mentir. O carinho bateu em retirada procurando guarida no guião, o canto, mais assustadiço, recuou rumo às províncias animalescas. Urdiu-se um mundo em letras garrafais para gáudio dos míopes.
O cérebro apodreceu de certezas. Fogachos de um númen a gastar os últimos cartuchos, idêntico ao dia em que renunciaste à tua luz. Para saber falar da vida é preciso passar uma temporada como carrasco. O resto são lérias que nos contam para que possamos dormir sem pesadelos.
O personagem fala da necessidade de se conhecer. Que imbecilidade. Sofro mortes umas a seguir às outras, nada do que é desumano me é estranho. Não caminhamos para nada de definitivo. Provavelmente é preferível atermo-nos ao silêncio e à imobilidade. Já não há nada que o caminho nos possa oferecer. Toda a desgraça brota do homem que se ausenta da sua pose de estátua. Gárgula insatisfeita semeia o caos onde ontem havia serenidade.
Ao sabor dos tiros ocasionais, os quais não nos matam nem nos ferem, eu cubro o maior leque possível de movimentos de fuga. A dança posta a nu, coreografada pela morte. A toda a hora se falha, a toda a hora se recomeça. Trata-se de uma verdade inabalável.
Um pouco disto que vi nos filmes, um pouco do discurso da celebridade, uma indignação temperada de forma a parecer justa; vida para uns, circo para outros.
Pudesse eu ser um palhaço no lugar do funâmbulo e apaixonar-me pelas alturas a cada passo dado em direcção à morte. Todo o sopé foi debulhado pelo ruído. Eu sou quem se despede da povoação para arriscar a minha vida no fio da navalha.
Com o olho aberto para o tráfego divino, catalogo os anjos que sobem e descem, os que saem do Céu em direcção ao Inferno e os, mais improvável, que partem do Inferno com o fito de conquistar o Céu.
Deixei as asas hoje carcomidas pelo pó fechadas nos poemas abortados. Apesar disso não me afastei completamente da ideia de Homem: fantasio com as minhas utopias, doutrino migalhas e fantasmas. Cansando-me das trajectórias puídas das redes sociais, as quais, apinhadas de evangelistas de pacotilha, espumam de fórmulas, espremi o meu coração com uma miríade de mãos. Bebi-lhe o sumo e o sangue e, recobrando a energia, afastei a ideia do Homem bom da minha cabeça. Ainda chamarei a isto uma vitória.
Amputei as asas, obriguei-me a descobrir a minha forma de voar.
Entrementes, sacudirei o pó das muitas mortes que conquistei. Critiquem agora a minha jornada, ó fulanos benzidos pelos bispos do eco.
A morte
ontem palavra
hoje calafrio
amanhã certeza.