Roberto Gamito
05.07.22
Se não houver laivo de generosidade nos teus actos, principiarás a emular a coreografia de um pequeno tirano. O narcisismo é um viveiro de déspotas em princípio liliputianos, o smartphone um espelho. O espelho, afinado minuto a minuto pelo algoritmo, está sempre lá. Espelho meu, espelho meu, há alguém mais interessante do que eu? Ao contrário do célebre espelho, este não cairá no erro de dizer a verdade.
Estamos todos tão apaixonados pela ideia de que fomos entronizados pelos likes e comentários que não nos apercebemos que, dia após dia, cultivamos uma sociedade de regicidas. A empatia dos novos tempos é a ficção suprema.
A internet é uma corrente ingovernável de versões de uma única biografia oca, na qual todos os episódios não senão simulações, uma tempestade ora subtil, ora escancarada na primeira pessoa. As confissões parecem saídas da cabeça de um opiómano. O padre ou o terapeuta só tem o direito de aquiescer.
Deixas bem-intencionadas resvalam, naturalmente, para o inescapável empoderamento do eu.
Tudo é acerca de ti, um conflito bélico no oriente, uma sonda espacial lançada para o cu de Judas, a morte de alguém mais ou menos célebre, o lançamento de uma engenhoca inédita que na próxima semana ficará obsoleta, uma ideia papagueada sem vigor por este ou aquela marioneta. Sem querer, maquilhas cadáveres e ideias coxas para aumentar o engajamento.
Enterras a morte em maquilhagem até que a morte não se assemelhe a ninguém.
És um incendiário oportunista. Esqueces-te do essencial: o fogo não tem senhor. As faúlhas dessas conversas frutíferas para o teu ego saltam sem que te dês conta para temas inofensivos. O Eu semeia faúlhas em todos os pontos de vista. O Narciso é o agricultor do Apocalipse cheio de boas intenções. Não espanta, o desejo do Eu é a aniquilação. Será isto aquilo que Freud chamou de suicídio inconsciente?
"Lembra-te, pois, de onde caíste e arrepende-te", eis a voz tonitruante vinda do Livro do Apocalipse. Numa sociedade excruciantemente positiva, a queda foi abolida ou mascarada.
Mergulhando no seu reflexo com a botija de oxigénio da gratificação instantânea, o Narciso escreve às escuras propostas para mudar o mundo, recauchutando-as dia sim, dia não consoante o vento mais em voga para que tudo arda sem entraves.