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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

26.01.22

Quando nos damos conta de que nenhuma motivação humana é compatível com o infinito, que fomos ludibriados com a suposta ligação com o Altíssimo, que não foi suficiente aquecermo-nos no interior putrefacto do cadáver de Deus, de que não vale a pena encetar a dança com um gesto derradeiro, que é impossível fugir da guilhotina perdigueira, a qual paira em cima dos nossos actos, o cérebro, feito em papa, já não logra esconder a sua loucura. As palavras claudicam e regressamos à animalidade.

Já não tendo lugar no seio da ficção, escorraçados pela verdade ríspida, sozinhos, qual Adão amputado da sua Eva, olhamo-nos no espelho sem nos reconhecermos. O teu nome é, na verdade, o teu pseudónimo. Tu és um outro que ignoras. A estupefacção tumultua a respiração mas logo se regulariza, arrefeces e endureces nas mãos do imprevisível. Efémero de plasticina, experimentas o cardápio da rigidez.

Agarrando o papel de medroso, personagem com mais saída neste século, tudo passa a conspirar contra ti. O cinismo virou-se contra o cínico, és vitima da subjetividade desdobrada em carrascos. Semeias cadafalsos em cada pegada.

Prometidos aos abutres e às horas silenciosas da última horizontalidade, o quotidiano ensina-nos danças bafientas que apodrecem a nossa verticalidade. Ante a promessa de salvação, resolvemos encetar um questionamento perpétuo, afugentando anjos à paisana. No pino da demência, projectamos os nossos desígnios febris — o tal exército de febres — sobre uma migalha. Doravante cuidadores dessa migalha, cremos ver nela uma semente de cosmos. Trata-se de uma agressão perpétua ao insignificante.

A noite humilha as nossas ficções e obriga-nos a considerar o precipício. Desarmados de sonhos, eis-nos submetidos aos apetites das musas tornadas hienas, subservientes face à sua fome. Mantermo-nos de pé quando cercados de mandíbulas ababalhadas é uma espécie de fanatismo.

O coração distancia-se do mundo, o cérebro torna-se eremita e o estômago metamorfoseia-se na biblioteca dos projectos abortados. Esta estagnação de órgãos, esta bomba-relógio nas faculdades, ensinar-te-á o itinerário da cólera. O desabrochar da sede de sangue revela o homem verdadeiro face ao qual o nosso conhecimento, pilhas e pilhas de lérias, se releva ridículo.

Itinerário da Cólera

 

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