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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

30.04.21

Neste catálogo de laracheadores pós-modernos, há pouco ou nada que mereça atenção de um olhar mais exigente.
A comédia passeia-se manca pelas frases, a pedir desculpa, em posições nada abonatórias para gente que se autodenomina séria, ora de cócoras ora de cu para o ar, comunicando a sua dor com exuberante espalhafato enquanto guincha qual esquizofrénico o seu génio afonicamente, para gáudio do público semisurdo ávido de um não sei quê, que, no desdobrar do número com ares de comédia, viu assim o seu ego afagado. O tempo dos grandes rasgos já lá vai. O tempo em que a voz tinha o poder de causar um abalo sísmico afigura-se-me, visto à nossa luz, matéria de lendas e mitos.

Acabaram-se os peregrinos, na antiga e talvez verdadeira acepção da palavra, os eremitas do deserto, que procuravam, sozinhos, o seu Deus, o vagababundo, o flâneur. A nossa época é um viveiro de turistas, jogadores e putedo. Eis o catálogo da sociedade, eis o catálogo dos bobos. Desculpem o exagero, o putedo não tem nada que ver com isto, numa sociedade polida não há putedo propriamente dito, não há comércio sexual às escâncaras. Quem sou eu para denegrir o bordel, um complexo habitacional susceptível de atrair "gente de fora", o qual auxilia com alegrias várias e abundantes, haja dinheiro para isso, a economia local.

Ainda como achega: hoje existe uma métrica exigida pela culpa, pelo medo, pelo politicamente correcto, pela visão consumista com a qual abordamos as coisas, pela forma turística de fitar o mundo, pesam-se as sílabas das piadas, quer seja pelo possível dano, quer pelos ditames da literalidade; as piadas são plasmadas com o mínimo de veneno possível, o conteúdo é relegado para segundo plano, é preciso é haver espalhafato e holofotes a dar conta da ocorrência. Uma contradição em termos, se pensar fosse a nova moda. A nenhuma frase é permitido explodir em várias direcções, ser rodopiante, contradizer-se, ser um nada à procura de ser algo. Embeiçados que estamos pela informação, a comédia perdeu a capacidade de ser mágica. De ir de um sítio A para um sítio B com estrondo.

Esta passeata pelo panorama, como direi, risivelmente humorístico que vivenciamos presentemente, como está bem de ver, é, desculpem-me o eufemismo, uma valente merda. E não me estou a referir à passeata em si.
Aqui entra, todo janota e cheio de ginga a personagem de que vos quero falar, José Sesinando. O primeiro contacto que tive com este senhor, ou melhor com a maestria dos dedinhos deste menino do humor, foi, salvo erro, num livro. Sublinhe-se a graçola, num esgar típico de youtuber, com careta à Malucos do Riso 2.0, que é para ter a certeza que perceberam. Foi há uns apitos de tempo que me apareceu, qual cometa, olha o menino a usar expressões de críticos literários a quem falta carne vocabular para descrever o flagrantemente novo, este senhor. O primeiro encontro, ou semiencontro, aconteceu numa crónica de Abel Barros Batista, senhor que tão bem preambula a "obra perfeitamente incompleta", de José Sesinando, recentemente editada pela Tinta da China. Dele, antes do contacto com este canhenho, só consegui ler algumas frases avulsas, algumas fagulhas humorísticas que fui coleccionando em textos alheios. Procurei a obra ântuma durante algum tempo em bibliotecas, em livrarias, em alfarrabistas e em bancas de merceeiro mas, como é meu apanágio, fracassei esplendidamente como gente crescida. Descansei quando, há anos, 3 ou 4 ou coisa assim, li que havia intenção de reunir a obra de Sesinando por parte dessa editora.

Ora, José Sesinando é aquilo que se pode chamar...uma pessoa, que além de ser pessoa, é um filho de Laurence Sterne. Se acreditarmos em Deus, tem pelo menos três pais.
Sesinando só precisa de um mísero pentelho para fazer a frase dançar. Onde os outros estacam por escassez de meios, Sesinando baila madura e doidamente. Do pai Sterne herdou a sabedoria de intuir que para se falar de alguma coisa podemos ir por veredas marginais e, se for preciso, nem tocar realmente no assunto. De Deus herdou a habilidade de parir milagres. Um valente pirete literário às formas convencionais de vistoriar as coisas. Dos poetas malditos, aprendemos que podemos ser mais humanos a falar de inumanidade do que a falar de humanidade, é preciso é haver mãozinha para isso.

Muito mais haveria a palrar sobre Sesinando, e, como Sterne, tentei, através de uma coreografia de tangentes, passar-vos a vontade de dançar que se apossa de mim ao ler este grande escritor de humor. O que importa nos livros é a vontade com que ficamos para fazer algo após a sua leitura. Este livro, ou esta reunião de livros, tipo bíblia, cumpre eximiamente a sua tarefa. Obrigado, José Sesinando. Sei que estás morto, mas o livro só me chegou agora, por isso espero que me perdoes o agradecimento impontual. Obrigado*.

*Perdoa-me a escassez de notas de rodapé.
 

José Sesinando, Roberto Gamito

 

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