Roberto Gamito
19.05.21
Em miúdo ralhavam-lhe, corrigindo-lhe a postura: puto, endireita-te! Hoje, mais alto que os demais, aconselham-no a encurvar-se. És demasiado alto para nós, ó gigante, não nos envergonhes com a nossa pequenez. Na margem de um grande nada, atinge a cólera pausadamente, como se não houvesse outro caminho, como se este houvesse sido predestinado.
Começou como escritor minucioso, porém, ao atingir as mil e uma revisitações com a cabeça na mão, bobo e rei degolado, deu-se conta que a sua mão se havia metamorfoseado num vândalo. Alcançou a barbárie após sucessivas carnificinas, bárbaro gerado pela tentativa e erro, enquanto o velho, já sem dentes nem língua, inscreve na areia da ampulheta o seu epitáfio.
Na barriga de mulher prenha, apodreceram as hipóteses. É tudo o que sei. Não se sabe o que apodreceu ao certo: se o futuro, se a criança ou a crença. De chofre, extingue-se o canto das aves. Segue-se o suicídio colectivo dos poetas.
Pequenos corpos, ficticiamente grandes, corpos uns contra os outros. O bulício da cidade grande replicando o caos do mundo quântico.
Não existe em cima ou em baixo, à esquerda ou à direita. De tempos a tempos, estamos perdidos no espaço. Sem norte, o vazio é escrito em maiúsculas. Na noite cósmica, o grito não medra.
Fito o insecto e de seguida pressiono-o até que expluda. Agita em mim o sonho de replicar o big bang, uma vontade de expansão.
Essa é a razão pela qual os versos são tensos: há neles um universo latente à beira da expansão. Um tentar ser deus contra todas as probabilidades.
No princípio era a obsessão pelas pequenas coisas, como um Proust ou um entomólogo, porém não me contentei com o mundo do muito pequeno. Bailo, aflito, entre estes dois mundos. Do pequeno ao colossal, do insecto ao cachalote, tudo pode ser cantável.
Ícaro tomba no oblívio, que é como quem diz, no epicentro do funeral dos vocábulos. A procissão deste século.
Um verbo que possa viabilizar, qual engodo, a minha fome.
O deserto de um único homem: eis a província do grito.
O gigante orla a praia com um cachalote debaixo do sovaco, como se o mastodonte branco fosse uma baguete. A partir daí, o episódio correrá mundo, seja pela boca dos jornalistas, seja pela boca dos profetas. No momento seguinte, o gigante façanhudo, o detonador dos grilhões, o novo inventor do fogo, será discutido com meias-palavras entre o café e as torradas. O milagre desmantelado pelo quotidiano.
Foda-se é o nome final que lhes sobrará. O amontoado de cadáveres, de ideias desfeitas, promessas quebradas.
A este corpo sem maquilhagem chamam-lhe o quê? O bobo, o tonto, o coitado, o miserável, o sem cabeça — o degolado.
De falhanço em falhanço até ao fojo inescapável.
A vida é o dia-a-dia da morte.
De súbito, vemos uma frase memorável num sítio insuspeito. Não surte o efeito desejado, talvez se fosse 10 anos mais novo e seria enfeitiçado. Entretanto, a couraça concedida pelo tempo tornou-nos invulneráveis à maioria das magias: paixão, amor, amizade, ideias de engrandecer um cadáver votado ao esquecimento.
Parava em todos os apeadeiros. Perguntava por Deus e prosseguia caminho. Uma interrogação que logo lhe desinteressava.
Nunca houve resposta. Ou não se lembra ou não quer contar. Ou não faz diferença.
Suspiro é tudo o que és. Carne pontual compactada entre o passado e o futuro. Canto esmagado pelo dia-a-dia.
Repetir tudo de novo. O luxo dos opulentos. E todavia a vida.
As coisas sem nome ameaçam-nos com a sua estranheza. Não fosse a curiosidade e estaríamos mortos.
As pessoas ligam-se umas às outras por um gesto falho. Um passo de dança retirado da coreografia burilada. Perfeito, mas desumano.
No espaço, onde a noite é uma certeza vinte e quatro horas por dia, não há aqui nem ali, nem eu nem tu, nem tão-pouco haverá espaço para adjectivos. No alto, bicho sem importância, na terra, rei postiço.
E passa-se ao raciocínio seguinte, como que fintando a morte.
Esqueletos que não podem regressar a casa. Um costume da religião lá deles. Consequências, cão e sequências, inferno, cérebro, bicho de três cabeças, vida, pensamento e memória, dois corvos nórdicos e o seu funeral.
Cérebro, metrópole do desgoverno.
O século que nos gerou prenhes de defeitos: sem mãos, sem pés, sem língua, sem cabeça, sem nada, um bicho franzino empanturrado de ficções.
E no entanto, o cadáver adiado simula a cotovia, tudo evapora: carne, pele, ossos, alma até sobrar apenas uma voz nos antípodas do grito. Uma redenção custosa, sem deus que nos acompanhe na fuga.
Não obstante o fracasso, continuamos à cata de uma língua que nos possibilite lutar com o mundo de igual para igual — oh quanta pesporrência. Um pouco antes da falência, cuspo as línguas mortas, regurgito o cadáver de Deus na tentativa de chegar ao limite disto tudo, o limite do humano, do verbal, do animal, levar o verbo, esse início cansado, à humilhação. No fim havemos de olhar para isso tudo como quem olha para um auto-retrato.