Roberto Gamito
29.01.21
Uma mão aflita que fosse de flor em flor. Estabelecida esta primeira confusão, realizado o contrabando dos perfumes, com os quais seríamos repentinamente destruídos nessa viagem ao passado, sobra-nos um punhado de frases derruídas. O presente é um resíduo do passado. A atitude humana em relação ao passado é aliás de uma aterradora complexidade. Labirintamo-nos. Bocas que nos resgataram do pântano da homogeneidade, tal como o gemido daquela que fornica é, a par do grito, a suprema afirmação de vida. No plano do desânimo, podíamos supor que o gemido, os seus repetidos ensaios em dias que não lembram ao diabo, nos quais deslizamos do tédio para o entusiasmo pelo declive do tesão, é tão-somente um ensaio para o grito derradeiro. Eis duas formas lindas de interromper o silêncio, dado que as palavras já não surtem efeito: gemido e grito.
Quando dois corpos se encontram atraídos pela mesma fome, tendem a formar um mundo tumultuoso, no interior do qual geralmente as diferenças hierárquicas entre presa e predador são poucas. Sexo, olhares, gemidos e outras coisas manuseáveis pelo pensamento, caso a mão esteja fria e longe da carne, postas na folha crivada de riscos. Afastados os corpos, ingressamos no império da sede. O que é afinal a poesia? O ofício de erigir um bebedouro.
A língua gatinha onde ontem era lume. A mão, a qual perdeu a sua dignidade ao trocar a carne pela folha, empobrecida por uma primeira atabalhoada tentativa de procurar nas letras aquilo que lhe escapou. Uma mulher numa métrica a pique, musicada pelo coração elegíaco. No plano da utilidade, um acto maravilhosamente risível.