Roberto Gamito
05.08.21
Desço ao fundo de mim — ao verdadeiro inferno — com a esperança de não encontrar ninguém conhecido. Em todo o caso, estou completamente às escuras quanto ao regresso.
A poesia está morta, afiançam-nos; surpreende-me que continuem a malhar no vento ou naquilo que, em dias inspirados, designam fantasmas.
Não havendo outra anestesia, recorro aos dias transmudados em carcaças que fui enceleirando no decurso dos meus passos. A mão avança cautelosamente pelo corpo pejado de cicatrizes, qual agrimensor obscurecido pela tarefa de inventariar as fronteiras da barbárie.
Ao contrário de outros dias, o grito alheio endireitou-me a prosa. Após a metamorfose luciferina, o diabo entrou em mim com um mandato de detenção. Digo-lhe que Deus não está dentro de nós, mas ele não acredita.
Vigio o meu coração à cata de falhas na sua sinfonia. Baptizo cada uma delas de olhos fechados. Foi o que deu andar a brincar aos apaixonados.
Fico a pensar no precipício acidental que a minha vida se tornou. A esperança pode ter os dias contados. O quadro está à mercê de legendas enaltecedoras.
Uma mão-algoz-do-nevoeiro avançava dramaticamente na folha sem pedir licença, sem se submeter a porteiros e a convenções. O cachalote colossal encalhado na margem da memória. Já haviam dado ordem no sentido de desempacotar a civilização alojada na sua carcaça. Puta que pariu esta refeição, eis as últimas palavras do cachalote. Lego aos exegetas a labuta de pôr em discurso os meandros da refeição resgatada.
O mundo não tarda será outra coisa, assim como o inferno — o melhor é não descurar as lições de voo. Se tivesse que adivinhar, diria que nunca houve nem haverá profetas.
Leitor, veja pelo lado positivo: não há ninguém com quem competir. O inferno não é para mim, pensa o leitor ao desistir do texto, prefiro sítios mais frescos.
Ia ser excessivo mais um pouquinho. Pôs a vida mais alta, tirou a mão mais venenosa da aljava e fez pontaria ao coração das Parcas. Pusera a coragem em romance e a determinação voltara a notar-se no olhar.
O bando de burros tapara por fim o sol. Isto e aquilo e podia continuar por aí fora, comentou o chefe das aves orelhudas.
Isto é sobre o quê? O amor é sobre o quê? Dúvidas com muita luz à mistura. Um único dia tomara conta da minha memória. Uma migalha selvagem com a mania das grandezas. Não estou perdido, não sei de onde parti, nem tão-pouco sei como aqui cheguei. Atire a rosa-dos-ventos — o meu queijo — para a fogueira, disse o corvo, vai ver que tudo fica mais fácil.