Roberto Gamito
15.04.22
Apraz-me saber que existo como um ponto que nunca conhecerá o Big Bang, sem cara nem humanidade, no olho aéreo da objectiva. O ponto atravessa a rua. Comportamento ambíguo: pode tratar-se de um cão, de um gato ou de um animal vertical. O bicho entra no carro com vista a conduzi-lo. Pode ser um urso treinado para o efeito, há vídeos e memes que atestam a possibilidade deste cenário. Pelo sim, pelo não, disparar, capturar a imagem. Eis-nos engaiolados num cárcere de píxeis.
À margem do inferno quotidiano dos vivos, há quem entre galões e bolachas decida, plantado num deserto mais ou menos metafórico, o destino dos fantoches. O Homem dos Robertos, dotado com a sua mão de mil dedos, paira sobre o nevoeiro.
Protagonista ou espectador do diálogo? Perante um muito tentador apetite de engrossar o caldo do ruído com as patacoadas mais em voga, o homem contemporâneo, filho de um sem-número de ecos, pergunta a si próprio: para quê isto tudo? Não são os canalhas que vivem melhor? Moral grega, elogio ao senhor; moral cristã, elogio ao desgraçado. Depenado pela economia, com uma mão à frente e outra atrás, qual coreografia de TikTok, o homem sorri: é feliz quem não precisa de nada.
Do outro lado da barricada em chamas, o padre aconselha: não deves desperdiçar os teus talentos em cobiçar essa constelação de putéfias. E o amor?, pergunta o homem. O padre, corrompendo o dito de Santo Agostinho, retruca: só sei o que é o amor quando não mo perguntam.
Virei costas a Deus, giro numa dança de lâminas para que Ele nunca Se aproxime aproveitando um ângulo morto, incendiei a vida eterna e agarrei-me com unhas e dentes à vida terrena. Como escreveu o filósofo bigodudo, há que querer que esta vida, e não outra, se eternize.
Deus está morto, eis o que vemos quando olhamos para o momumental cadáver. Sem o oxigénio da crença, o grande cachalote encalhado e desinchado de importância numa margem lá para os lados do passado. Uma boca de proporções bíblicas da qual saem pequenos projectos de demónios, quais parasitas que abandonam os restos mortais das baleias à procura de outro hospedeiro. Inspirados em Wittgenstein, perseguindo a ideia segundo a qual, para se poder falar do mundo é necessário sair dele e contemplá-lo como um todo, serão mais tarde aclamados biógrafos do Númen. Jonas bem tentou explicar a situação à sombra da aboboreira, mas o Altíssimo não passou cartão.
Tornando o Eterno Retorno mais mastigável, essa ideia que passa de mão em mão desde os tempos de Zenão, Arash Arjomandi aconselha-nos: só deve realizar os actos que gostassem de ser autor repetidas (talvez infinitas) vezes. Por conseguinte, mato-me a cada verso, sou cuspe de carne vomitado do grande cetáceo encalhado. Sou faúlha possessa abrindo crateras modestas na folha.
Do alto sou um ponto a abater. O acto de observação obnubila a observação. Abatido o humorista, sobram-nos as palavras de Bergson: não há forma, já que a forma é imóvel e a realidade é movimento. O que é real é a alteração contínua da forma.
Ao matar a comédia, abate-se equivocamente o inocente e é-nos contada a última piada: "esta tecnologia é um testemunho neutro, livre das imperfeições e distorções da memória humana."
Haverá sempre um homem atrás da câmara: resta saber se está vivo ou morto.