Roberto Gamito
14.06.21
Há muita coisa que se pode investigar de coração aberto.
Entrevistar pessoas, tirar conclusões. Entrevistar animais, tirar conclusões. O mesmo estudo. Do lado de fora da sala, separados por um vidro, qual esquadra de polícia, os descendentes de Noé avaliam se os animais são merecedores de ingressar numa nova arca.
Usar o mesmo espaço para outra experiência. Na mesma sala, o suposto imortal e o abutre. Qual deles será o primeiro a desistir da sua natureza?
Na mesa posta no pavilhão vazio, a faca parece fazer convites irrecusáveis. A performance da metamorfose do homem aborrecido em suicida dar-nos-á matéria de estudo nos séculos ulteriores.
Se quisermos humanizar o vírus, imaginemo-lo como uma chusma de franco-atiradores no alto de todos os edifícios. Um franco-atirador por cada ser frágil. Cada tiro, cada melro. Não haverá sobreviventes; a chusma evaporar-se-á assim que a tarefa última estiver concluída.
Deixei de acreditar em Deus quando me dei conta que o meu amor foi insuficiente. Se Deus é insuficiente é porque Ele é uma farsa. Deus é amor mas igualmente o nada.
Resignado ou possuído pela arte? Possuído pela arte podemos mudar de assunto ou tratar o assunto de sempre pelo ângulo morto, uma perspectiva inesperadíssima.
O assunto não sou Eu — o século XXI esqueceu-se do básico. O lado hilário desta constatação: arte a fazer de conta que é arte.
Não sei se a poesia está morta, todavia, num século domado pelo ruído, é preciso parar e celebrar o espaço entre os versos. Árvores e arte como fornecedores de oxigénio. Tentar por todos os meios preservar quem nos permite respirar.
O poeta permanece qual homem-estátua diante da folha em branco. Orgulho-me, pensa o vate, desta força e da obra que resulta dela. Pôr a energia no branco da folha, tornar a obra assustadoramente ilegível. Nos arredores da cratera do asteróide, o profeta afina os detalhes da próxima profecia. Um fim afinado dia e noite. Um fim sem falhas: eis o que profeta anseia.
O espaço todo usado, liquidado pela selvajaria da prosa indómita, verbos e nomes e adjectivos e o mais povoam a folha sem língua que os pacifique. O retrato abandalhado da humanidade.
O espaço todo usado da folha outrora em branco, conquistado pelo poema, fórmulas matemáticas e exegeses e sublinhados dos vindouros. Uma ciência ulterior que semeia sublinhados e notas de rodapé. Uma cerimónia que preludiará o pó.
Um fracasso amoroso tão grande que pode ser visto do espaço. Astronautas dedicados a estudar a extensão e a beleza do fracasso.
A coragem desertou. O funambulismo por ora suspenso. O génio nasce quando uma criatura fita o mundo e encontra forças para o defrontar numa luta de vida ou morte.
Qualquer dia começa outro século e ainda não fizemos nada que preste com este. Bebemos para homenagear os dias. Os dias futuros, os dias passados. O presente é a taberna onde se celebra o passado e o futuro.
A comédia banida. Imaginar especialistas nas ruas, cafés, nos andaimes a detectar humor em frases inofensivas. Aniquilar qualquer desvio à norma. Dois mundos incompatíveis: narcisismo e comédia. O que nos dirão os corações se não houver possibilidade de rir face às tragédias?
É preciso levantarmo-nos da cama, fazer uma fífia à depressão, fingir que sobrevivemos à tempestade. A língua dos predadores, a língua das presas. Não é a fuga nem o combate. A dança como tradução suprema.
Tu mudas, os critérios mudam, ou vice-versa. Digo isto pausadamente. Minutos antes da emboscada, arranjamo-nos. Um último capricho. Há muito medo nas entrelinhas das frases motivacionais.
Mais uma desgraça. Sobe para X o número de deuses que morreram desde o início. Desnorteados, vasculhamos as prateleiras dos hipermercados à procura de algo a que nos agarrar.
Um vírus enquanto avó, que nos obriga a ficar em casa. A ver se o teu cheiro torna mais tragável a vida, a ver o teu beijo abranda a queda. A ver se o meu olhar singra no teu rosto.
Pandemia interminável. À noite, ouvimos um número — preferencialmente ao rés do zero — como quem escuta uma canção de embalar. Pouco infectados, zero mortos. O homem pequenino dorme descansado.