Roberto Gamito
05.05.21
Não sangraste para gáudio dos sequiosos deuses arcaicos, não anuíste de joelhos ao círculo de legitimação. És um cadáver que é comentado da seguinte forma: “Ele agora é apenas isto”.
Pensamos o mundo, reabilitamo-lo na nossa cabeça pejada de ruelas enquanto o prato não nos chega à mesa. É o suficiente para ficar tudo na mesma.
Com ou sem rios de dinheiro, careces de celeiro onde guardar as horas poupadas a não viver. As chicotadas que as tuas múltiplas mãos comeram serão amanhã sublimadas num relampejar de sílabas desagradáveis ao tacto. O amanhã puído pelo falhanço. Olha como brilha graças à tentativa e erro.
Algoz madrugador, corpos desancados pela luz oriunda do cadáver divino. Pouca terra, pouca terra, muita turba, muita turba. Desse canto se fez estrume, desse estrume uma cidade, entre uma coisa e outra teceram-se histórias intermináveis. Em todo o caso, mesmo durante as histórias rolaram cabeças.
Alicio a alcateia com entradas, dou pasto às mandíbulas desejosas de me matar com historietas de sangue. É pôr os predadores a matar, as presas a fugir e a lamentar, isto é, fazer as coisas como deve ser.
O padeiro não conheceu nada senão tristeza, levou a vida trabalhar na mó de baixo, ao passo que o seu amigo, duradouramente feliz, labutava na mó de cima.
Bandalho e o alho, o paspalho e o chocalho, o espantalho e o caralho e o etc., o qual serve de tampão para a enumeração.
O deleite trazido pela eufonia que nos levará a dizer baboseiras, as quais, mais tarde, nos envergonharão. Mandámos vir a morte e ela veio; agora não sabemos o que fazer com ela.
O corvo à cata de um novo augúrio, o fim que não nos ouça ou nos perdoe. E que a borrasca de cona — milagres! — sacie alguém que à mingua andasse. Que o orgasmo nos alinde por momentos o mundo em farrapos e nos quebre o gesso proporcionado pelo quotidiano. Necessitamos de acreditar que sabemos andar depois da chegada do orgasmo.
À parte isso, retratou bichos imaginários. Ele era, a bem dizer, um sonhador. Ganhava a vida a matar para terceiros. À parte isso, um tipo impecável, nada contra.
Cansado de missões, fatigado das cruzes alheias, farto de ser enxovalhado pela queda e pela luz, Ícaro deu um tiro nos cornos em pleno voo. Pintem isto se conseguirem, terá dito.
A pira ou o cadafalso, irmãos de sangue, esperam-te. O gordo com pensamentos suicidas foi à mercearia despedir-se das coisas boas da vida. Segundo relatos locais, os pacotes de batatas fritas emocionaram-se gradamente.
Pouco resta desses dias, mesmo o texto parece não se importar com o desfecho. Crónicas, poemas sem fim. É poeta, mas vêem nele um cão irrepreensivelmente domesticado. Um poeta de loiça. De facto, apenas emula o poeta.
O que ficou no passado fugiu deveras e não há nada a fazer. Alfinetada na actualidade como quem colecciona escaravelhos na parede. Verbos que caem de podre da boca, sem acção.
Alguém terá estado nos bastidores dos poemas que não escrevi. Deus, um nome minúsculo capturado no âmbar da memória.
Terminado o reinado da hesitação, a insânia principia a dar os seus frutos. O deserto finalmente floresce. Mas não é isso que me trouxe cá.