Roberto Gamito
17.12.20
Foi na taberna que se arruinou. Até então tinha sido um fabulista respeitável. Sabia ouvir e falar com animais, a saber: porcos, cavalos, patos e galinhas admiravam-no, respeitavam-no.
Não obstante a ligação fecunda entre este homem singular e os animais, não tardou a cair na rotina e a sentir na pele os efeitos nefastos associados a uma ligação mais duradoira. Os problemas começaram a surgir em catadupa, que é como quem diz, a realidade decidiu bater à porta. O que antes era visto como uma bênção depressa se transformou numa maldição. Os animais viam no fabulista uma espécie de psicólogo. Escutou as quezílias entre o gato e o cão, as preocupações das cabras, as quais, desmotivadas por não haver nada que se assemelhasse a uma elevação na planície, se suicidaram num poço, as vacas que reclamavam por um jantar antes de cada ordenha, o rato que achava ofensivo estar sempre associado ao queijo, como se não houvesse outras iguarias tão ou mais apetecíveis, o falcão míope que confundia torrões de terra com lebres, a toupeira que queria aprender braille, o javali que não aceitava o seu corpo, o cavalo que falava dos casos de assédio e violação, meu corpo, minhas regras, dizia o equídeo, não posso ser montado por qualquer um.
Num rasgo de inocência, o fabulista abordou os animais comunicando que não podia levar tantos problemas para casa, era insustentável. Os animais não compreenderam. O burro disse que, desde que iniciara as consultas, até a palha lhe sabia melhor.
A vaca, essa, há muito que mantinha um flirt discreto com ele, bastava ter dois dedos de testa e prestar atenção na forma como ela mastigava as ervas.
Vejam como o descontentamento tem aí pasto e como há-de ser fácil para o fabulista enveredar pela via do vício. O seu dom revelara finalmente o seu lado venenoso. Acorriam de todos os lados do mundo vários animais a contar as suas histórias, pequenas rixas, presas a falar da relação tensa com o predador, predador a queixar-se de que as presas estavam cada vez mais inteligentes, herbívoros a pensar mudar de dieta, necrófagos com a ambição de carne fresca, enfim, uma miríade de reclamações a que o entendedor de animais não lograva dar vazão.
Não passo de um bailarino a dançar no pântano da mexeriquice, pensava o fabulista. A canalha ulula imprecações sobre tudo o que mexe, eu que pensava que os animais eram diferentes, mais afeiçoados ao essencial.
A pouco e pouco canalizou a amargura para a vida da pinga. Quando se deu conta estava a falar com pedras da calçada.
Segundo os registos da época, houve uma matilha que passou ao rés desse homem esfarrapado que, na altura, cavaqueava com o passeio deitado no alcatrão. Os cães, ao assistirem àquela triste figura, mijaram-lhe em cima. Não falas connosco há dias para depois vires falar com as pedras da calçada. Desiludiste-nos a todos, pensava que tínhamos algo especial. Não nos mereces. Daí em diante os animais nunca mais falaram com ninguém. A história do último fabulista.
