Roberto Gamito
19.07.21
O seu nome espalhava-se pela província ontem vedada qual nódoa ingovernável. Os afónicos ganhavam voz à sua passagem como se se tratasse de um deus fluido; os poetas, mão, os predadores, ardis novinhos em folha. As tribos uniram-se em torno do mesmo medo como pequenos corpos celestes influenciados pela gravidade da estrela. Os detractores, que é como quem diz os bárbaros residentes, tentavam arpoar de olhos fechados a nódoa com uma salva de interpretações, hipóteses, teorias e demais mezinhas com vista a diminuí-la, a abrandá-la e quiçá extingui-la, porém o cachalote líquido prosseguia incólume num oceano só seu. O antigo verbo afundava-se na adiposidade das dúvidas ao descortinar inéditas areias movediças no Homem. O passado finalmente encontrara o seu túmulo. Mais um prego no caixão do oásis. Uma nódoa-nome inflamável ao rés de um fogo posto em poema. Num universo paralelo, volvidos milhões de anos, o imortal acabara de realizar o inventário dos grãos de areia do seu deserto. Mas eis que a tempestade se avizinha para baralhar o trabalho e os dias. Onde há vida, há Sísifos, comentou o sábio que comia uma espetada de escaravelhos-bosteiros, também eles miniaturas de Sísifo.
Conservo os meus relógios — e o mais que logro rapinar — numa gigantesca arca frigorífica. A minha maior ambição é congelar o tempo. Abandonei o meu antigo emprego de oficial das carnes (1) e desde então dedico-me à descurada tarefa de domar a arte do zero absoluto. O cume inatingível, afiançam os cientistas.
A imobilidade absoluta e de caminho transformar o calor, o amor, a paixão, a vida num mito. Trocar as voltas ao senhor Borges. Erigir das minhas cinzas um início como nunca houve. Não descanso enquanto não for o coreógrafo — o bobo-mor — da inércia indevassável. O Universo enquanto palco do tudo e demais ficções.
E agora, quaisquer que sejam as intenções dos vindouros que venham a contribuir para esta miscelânea de ideias aparentemente opostas, esta valsa lenta cumprida em bicos de pés entre o fogo e o gelo, permitir-me-ão que gabe a astúcia macaca deste menino; atirem-me todos os apodos da casta da inveja, mas pelo menos não sou um animal extinto. Ao contrário de muitos espécimes que tropeçam uns nos outros à cata de professor de dança, que é como quem diz, ficcionam a verticalidade e carpem os passos adiados e que, em dias de festa aziaga, fazem as vezes do sacristão e dobram os sinos em honra dos eus que, aqui e ali, abortaram, eu, inspirado por Ovídio, pelos druidas-das-mil-formas, pelos xamãs siberianos — faço lá ideia por onde o transe me conduziu —, eu, qual mongol a cavalo na mais indómita ideia, transfigurei-me num mamute bípede. O meu coração apossou-se de mim, desde a língua à mão, alcançando o lugar de maestro das estações. O gelo e o degelo são obra dele, longe de mim ficar com o crédito de tais façanhas.
O gelo enquanto casulo. Enquanto animal renovado saído do gelo, cumpri o cardápio das metamorfoses de Ovídio. Nada do que é bárbaro me é estranho. E agora?
(1) Se bisbilhotarem os anúncios de emprego por estes dias, hão-de cruzar-se com este poético eufemismo para talhante. Por norma, sou avesso a eufemismos e tudo quanto dilua palavrinhas isoladas em longas perífrases, todavia algum dia teria de dar de caras com uma mui ilustre excepção. Belo nome, oficial das carnes.