Roberto Gamito
20.01.21
Os primeiros dias de confinamento deixaram-me mentalmente extenuado. Já não pico o ponto no posto de trabalho do pensamento. Das duas, uma: ou trepanaram-me o cérebro enquanto estava a ver um daqueles programas da tarde que nos anestesia ou alcancei o último patamar de burrice.
Acabou-se tudo, ligações entre temas, entusiasmo galopante face a assuntos que nos insuflam cérebro e coração, genica para quebrar o casulo do marasmo. Para uma pessoa se dedicar à vida contemplativa enquanto estamos engaiolados é preciso ter vocação, e uma certa dose de alheamento, quer dizer, é preciso saber aborrecer-se com toda e qualquer merda e não passar cartão ao que o mundo nos sussurra. É impressionante como a aura de encanto que as séries e jogos e demais quinquilharias onde torramos a vida se desvanece assim que somos como que impossibilitados de sair à rua. Aquela árvore à frente de nossa casa, cujo nome desconhecemos, interessa-nos pela primeira vez em décadas. Passámos por ela milhares de vezes como se ela não existisse e hoje, do lado de dentro da gaiola, dávamos tudo para fruir da sua sombra. Seja para uma leitura, seja para repousar na sua sombra, qualquer plano nos parece hoje apetecível.
O leitor está a gozar de uma bela vista para a catástrofe. Não sou daquelas pessoas cheias de não-me-toques, embora a expressão tenha adquirido novas e perniciosas conotações graças à pandemia; pelo contrário, deleita-me o circo das pequenas coisas, a saber: a sombra de uma árvore, uma brisa de nos afagar a alma, pássaros a dar de graça o espectáculo da sua existência e um livro ou uma conversa interminável.