Roberto Gamito
31.01.22
A última coisa que o meu avô fez antes de morrer foi votar. Entrego-me ao prazer de ser bombardeado pelas memórias, de assistir, impotente, à despedida de um dos personagens do filme da minha vida. Dado que só existe descanso à sombra da nossa nulidade, aproveito estes minutos onde a morte se arma em editora e nos reorganiza os capítulos da nossa biografia.
A velha pequenina pede um café à Chega, sem princípio, e põe-se a discorrer sobre o mundo com voz de fadista, não quer que ninguém fique de fora da sua palestra, encavalita temas uns nos outros, em associação livre, como se estivesse numa sessão de psicanálise. Segue-se um excerto cru e sem arrebiques, isto é, acabado de pescar.
— Lá num país qualquer, não deixam os outros levarem a vacina, estão a salvar pessoas e crianças; foram buscar imagens de guerra, camiões cheios de cadáveres, e mostraram-nas como se fossem vítimas de covid-19, isto disse-me um senhor que vive em Espanha; eles dizem que é covid-19 eu digo que não é; há dias um casal foi ao Brasil e diz que é mentira, foram lá e não viram nada; a vacina é tudo menos vacina.
Aproveitando o facto de uma coisa ser tudo, excepto vacina, cá vai: a vacina é mentira, verdade, Deus, amor, tema central das nossas xaropadas, veículo do nosso ódio, estandarte das nossas vulnerabilidades, expoente máximo do nosso desentendimento, a guloseima do papalvo e do intelectual, fruto da inquietude antes silente, porta-voz das nossas entranhas, aplauso face às nossas insignificâncias, o infinito degradado pelas alíneas, o antídoto à mercê das nossas horas mais vagas, disparate absoluto, patrono-mor dos tantãs, bandeira dos iluminados, derrapagem rumo à imbecilidade, a perspectiva da perfeição adiada, canalhice fermentada, labirinto de interesses posto a nu, cume dos sábios da preguiça, altar dos apóstolos do azedume, equívoco e epifania às carambolas, baboseira inseparável da vertigem, abafadora das nossas chamas, a aventura grotesca dos aleijados, a causa dos desmiolados, caramba, como sair desta subjectividade que se fragmenta numa chuva de arpões que se abate no nosso lombo?
A vacina, os números das eleições, a pandemia e o caralho que vos foda a todos prestam uma homenagem ao romance de Luigi Pirandello: Um, Ninguém e Cem Mil.
Quanto ao Homem, há mil argumentos a favor e outros tantos a desfavor. Em todo o caso, não há forma de o pôr de pé sem artifícios.
O fanatismo político é uma forma de delírio à qual não estou sujeito. Os resultados das recentes eleições não me surpreenderam. O ódio, o ressentimento, e sobretudo a humilhação têm conquistado muitos adeptos. A lucidez sempre teve muita dificuldade em entrar nesses terrenos. A relação de um homem típico com a política é a de um adolescente com o TikTok. Põe as dores do espírito e da carteira em discurso através de um rol de frases feitas. A subjectividade alucinante, própria de uma sociedade neurótica, é a grande vencedora da noite. Povo, trabalhadores não passam de vocábulos xaroposos na boca dos políticos. Os números da terceira força política não são nada animadores. Estranhamos o primeiro; dissemos não passa daí; um erro: desconversamos acerca dos números de outras eleições, que nada tinham que ver com esta; a performance do “não passarão” não é um feitiço suficientemente forte para deter a cólera — é antes revelador do abismo entre o homem e o político.
As cisternas de cólera estão quase cheias. Não sairemos melhor disto tudo: o grito nunca foi uma escola.