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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

06.03.22

O nosso frenesim de comunicação leva a que ninguém se ouça verdadeiramente. Urge dar voz a quem não tem voz, todavia esquecemo-nos que é preciso alguém se disponibilizar para o nobre ofício de escutar. Tornamo-nos bichinhos irrequietos à cata de estímulos. Alimentamo-nos de surpresas, de reviravoltas. Somos criaturas do zapping emocional. Não nos demoramos em sítio algum, somos dotados de coração nómada. Ratinhos de laboratório conduzidos pelo labirinto onde o queijo é ficcionado pelos homens de bata. É preciso aumentar a intensidade do electrochoque: o estímulo antigo já não é recebido como estímulo. Um dia morreremos electrocutados com uma surpresa gigantesca. Embeiçados pela pirotecnia de um mundo maravilhosamente colorido e ruidoso, tornamo-nos míopes perante as coisas silentes, rotineiras, desprovidas de gritaria, mas que se fixam cá dentro. O estímulo é um insecto da ordem dos efemerópteros. Bombardeados por informações e estímulos, o mundo transforma-se num fantasma colossal. Nada é firme e palpável, é antes movediço e incapturável.

Objectos e pessoas entram e saem da nossa vida como personagens de vaudeville. Ninguém — sublinhe-se que o objecto e o homem se tornaram quase indiscerníveis — veio para ficar. O amor é uma visita de médico. A nossa indignação face a uma tragédia tem a duração de uma pausa para o tabaco.

Somos fedelhos levados pelo tsunami de informação. A nossa arrogância impede-nos de pedir socorro, a farsa de que está tudo bem impede-nos de realizar o funeral da razão. O agora tonitruante elevado aos píncaros pela informação reclama a nossa atenção em permanência. Somos suricatas hipnotizadas pelas gordas. A nossa verticalidade é sinónimo de vigilância.
Intoxicamo-nos com informações desmembradas, algumas sem cabeça, construímos os nossos relatos em homenagem aos cadáveres esquisitos dos surrealistas.
Banidos do mundo da sabedoria, os sábios procuram refúgio no sopé da informação. O fetichismo dos livros ficou para trás. Convertemo-nos em fetichistas das gordas. O sapiossexual deu lugar ao datassexual. Alegra-me imaginar um encontro amoroso em que o homem seduz a mulher com tabelas e gráficos de excel.

Em boa verdade, tencionamos optimizar o presente. O homem antigo nada tem que ver com o homem contemporâneo. O infomaníaco nada tem que ver com o contador de histórias. Inventariar não é narrar. A história pertence ao domínio do contínuo, ao passo que a informação pertence ao descontínuo. Expectável, vivemos numa época notoriamente atomizada, na qual as ligações são desaconselhadas ou fantasiadas.

Para citar Byung-Chul Han, a infoesfera tem cabeça de Jano. Ajuda-nos a ter mais liberdade, mas, ao mesmo tempo, expõe-nos a uma vigilância e a um controlo cada vez maiores.
No mundo onde a eficácia comanda, a verdade tornou-se acessória. O que conta é o efeito a curto prazo. O saltar de uma coisa para outra tornou-nos míopes e ofegantes.

O homem contemporâneo não entende o quão equivocada é a expressão “tenho o mundo completamente ao alcance da minha mão”.
Ao não ficarmos à mercê da voz do outro, ao sermos incapazes de fundar a confiança pela via do olhar, ao tratarmos o outro como objecto dispensável, transfiguramo-nos numa farsa. O mundo não pode ser tocado via smartphone. Segundo Barthes, o tacto é o sentido mais desmistificador de todos, ao contrário da vista, que é o mais mágico. Se não tocamos em nada verdadeiramente, o mundo pode ser todos os mundos, pelo que o tsunami será inesgotável.

Sem olhar o outro directamente nos olhos não há empatia, sem toque não há humanidade. E fechamos com uma bela frase presente no mais recente livro de Byung-Chul Han, Não-Coisas. A ausência do olhar conduz a uma relação perturbada consigo e com o outro.

Phono Sapiens

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