Roberto Gamito
27.04.21
Piparote na língua de pendor magalânico, eco guinando para o lado das causas. Repara: já cá estamos. O nome do amanhã, descobri ontem, é Sebastião Depois.
A minha própria noite já teve melhores dias. Perdeu o juízo. Receio que não tenha resolvido nada de premente na minha vida até hoje. Está bem que faltam umas horas, mas não me parece que o mundo se importe com o meu esforço.
De gatas ante culpa a postiça: eis o retrato do século. Segundo a turba, o deus ignoto apreciará o gesto. Muito aquém de um Homem. Melhor dizendo: é isto um Homem ou uma piada?
Aventurando-se onde a lâmina falha, o poeta avança e guerreia de mãos a abarrotar de letras.
Assim, ó reis míopes, entrego-vos as minhas primeiras impressões:
1) Brindamos sem vitórias para não parecer mal. É embuste atrás de embuste. Porém siga a marinha.
2) O oceano é o único animal conhecido a adorar carne humana, ainda que cuspa grande parte dela. Entrementes, apodrecemos.
3) Transitória mansarda logo logo escaparate. Nova espécie: eremita domingueiro.
4) Cérebro, pequena fornalha onde o milagre do pensamento acontece de longe em longe, se tanto.
5) À medida que a solidão se adensa, engrossa a certeza de que não somos pertencentes a esta história.
6) A menos que estejamos loucos, somos destituídos de nome. Ouvi isto um dia quando ainda não sabia quem era.
7) Homens indomáveis, daqueles que já não há. Criaturas que não cessam a marcha da liberdade nem a pretexto de chumbo.
8) À mingua de ideias, todas as dores são dores de burro. Urge procurar propagandistas para disseminar a mensagem no twitter.
9) Com o ouvido destreinado, papagaio e poeta, ruído e canto equivalem-se. Adenda: a ninguém ocorre parar para apontar as diferenças. O Inferno do mesmo.
10) O coração, lá nas voltas dele, corria em direcção a não sei quê, imitando o gesto da viúva que entra em casa com a certeza de que vai encontrar o marido novamente.
11) Pressenti-lhe na prosa o sossego, na poesia, a fúria. Puxei fogo à proximidade e entreguei-me de corpo e alma ao outro lado da vida nova.
12) A esperança nasce quando fitamos o magnífico semblante de quem esteve ocupado numa bravata existencial e saiu por cima.
13) Com ou sem metamorfose no pêlo, sempre há quem te veja doutra forma.
14) No cabo dessas andanças, acabamos por largar tudo e sonhar com o regresso. Ficam por saudar os lábios que nos curaram quando estávamos mais quebradiços.
15) Mesmo perto, enroscado em corpo alheio, soletrando as mais belas e possantes palavras, ainda assim estrangeiro.
16) Um punhado de sensatez nunca estragou um guisado.
17) A tristeza de querer agarrar o mundo e não ter mais que duas mãos e um desejo. Provavelmente a prova de que o mundo está entregue a catraios. Não há meio de o Homem crescer.
18) Tudo é vão mesmo quando dura. Dica meio útil: não ser merceeiro, não acrescentar peso fictício às coisas.
19) Nos bastidores da cidade, piscina entregue a mosquitos e sapos, o progresso e a sofisticação que não deram em nada. Em boa verdade, exibem o seu avesso. Ao menos a montanha pariu um rato. Não é fácil afastar a ideia da esterilidade do progresso.
20) Sabedoria popular recolhida em dias de copos. O que é bom nunca amargou; porém, após começar é comum o caldo entornar-se.
Uma pequena nesga de perfeição bem regada.
21) Independentemente das tuas coordenadas, a morte não dista muito daqui.
De resto, aprecio o intervalo onde a imaginação me engrandece e me faz transbordar da vida minúscula. E isto é só o começo. Uma vez desmantelado o paraíso, os problemas nascem como cogumelos.