Roberto Gamito
30.12.21
Imaginei-me irremediavelmente pobre. Vasculhei os bolsos como quem procura as sobras de uma civilização perdida. Tinha para cima de setenta cêntimos; sorri, estava economicamente livre. É a sorte de viver no passado, quando o dinheiro ainda tinha valor.
Após nova busca, fiz outra descoberta. Encontrei as ossadas de um antepassado. Um antigo eu que havia esquecido. Um misto de horror e exaltação, aquele ulular engolido pela vergonha, o qual vem à tona para nos assombrar, apossou-se de mim. Apesar de marmóreo, que é o consolo dos fracassados, não podia deixar de sentir um certo desassossego.
Entretive-me a arear o passado e, findo esse trabalho, comecei a namoriscar o futuro. Perdera um ror de tempo a inventariar possibilidades, ângulos perfeitos e trajectórias para as minhas ideias-bala.
Quanto ao amor, nada de poético há a confessar. Não suporto sucedâneos nem versões diluídas, nem na vida nem nos livros, irei protestar — embora à minha maneira, cifrada ou escancarada, todavia à minha maneira — quando me tentarem ludibriar. O gato por lebre no tocante às verdades mais apetecíveis, a saber: amor, Deus e morte não me seduz.
Quando um amor antigo me escorraçou pela porta das traseiras com um pontapé magnifico no traseiro, talvez não tenha sido assim tão mau para a minha postura. O desmame foi custoso. Reerguermo-nos das cinzas é um trabalho hercúleo. Quem sabe se a solidão amarga não me terá afinado o miolo? Ou pelo menos dado condições para que, em certos momentos, consiga trampolinar até novas alturas.
Os anos passam, entre eles um salão de festas — de vaidades —, de meias-verdades, de meia-vida, de meia-altura, de meia-verticalidade; em suma, uma província de fogo incompleto na qual os seres humanos, inebriando-se com as aparências, estatutos, dogmas, reputações pensam exorcizar a morte — e todavia.
Usando o nomenclatura deles, sou um falhado. Rapinaram-me até ao tutano. Coisas há que escrevi há mais de dez anos que conheceram sucesso pela mão e pela boca de papagaios paraguaios destituídos de talento. Usando o dicionário deles, sou irrelevante. As hienas sofisticadas souberam ocultar a sua gula por cadáveres.
Tento esvaziar a cabeça de todas as guilhotinas e venenos que me povoam. Não tenciono atafulhar o silêncio de obstáculos e lâminas ou retirar-lhe a habilidade de se espreguiçar e de receber o desconhecido. Não foi a minha intenção transformar a minha mente numa câmara de tortura onde, dia e noite, a depressão e a ansiedade me torturam longe dos olhares dos demais. Seja como for, aconteceu, fugiu-me do controlo. Mais uma vez a História do Homem repete-se no homem.
Terá um travo amargo que eu, criatura apta a ir ao fundo qual cachalote, tenha de — isto é mais forte do que eu — insistir nisto, tentar afogar-me. Na profundidade onde a luz não é bem-vinda, a calma e a fúria, verdade e mentira equivalem-se, e a grandeza e a pequenez são lentas. No fundo, onde a luz foi escorraçada, a morte não tem pressa.
Regressemos à paixão. Os lábios aproximam-se fogosamente do meu pescoço, um coro de relâmpagos, gerado no coração, percorre o corpo de lés a lés. Paixão. Digo demasiado cioso da ideia perturbadora que esta palavrinha contém. Um fogo que se apresenta mínimo e cresce num estalar de dedos. Poeticamente, estou inclinado a afirmar: a paixão é a temperatura a que a carne humana arde.
À mercê dessas sensações, umas conquistadas outras imaginadas, o ser humano é obrigado a metamorfosear-se. Aquilo que sou não é suficiente, é preciso mudar.
A impotência total face ao que nos rodeia, com efeito, somos animais sem qualidades à beira da extinção. A incapacidade de chegar à nossa forma derradeira aprisiona-nos numa camisa-de-forças. Ou será um casulo? Sem comentários. A camisa-de-forças não merece qualquer apontamento.
Reservo as minhas horas mais obscuras para aprender a dançar com toda a espécie de verdugos. A morte defende-me da vida com unhas e dentes. Aproveito todos os instantes para desistir. Gostaria de poder espreitar para o interior do cadáver de Deus e perceber se há algo parecido comigo nas suas vísceras. Será possível asfixiar o futuro de tal modo que o mundo seja obrigado a inverter a marcha?
Então e se eu, nas traseiras mal-iluminadas deste século, de gatas e aos apalpões, dado que vendi a verticalidade ao Diabo, praticamente míope, fosse ao lixo catar uma nova espécie de luz?!!! Apesar de abundantes pontos de exclamação, a frase não chegou a ninguém.
Não se faz literatura com queixumes. Engulo oceano e cachalotes de um trago e prossigo, espero, fértil e criativo. Recomendaria uma cautela excepcional aos abutres, ou, pelo menos, uma inteligência ímpar no tratamento do meu cadáver aquando do saque. Um passo em falso e a minha morte trar-vos-á o dilúvio.