Roberto Gamito
27.06.22
Aos olhos da crítica coxa cada franzino era um docinho, cada bonsai um embondeiro, o trigo era joio e o joio trigo.
Escangalhava uma hora ou as que calhassem, entre folhas, à procura do meu nome, com ânsias de habitá-lo como escreveu o poeta a quem já ninguém passa cartão. Entre o teu nome e o verbo amar há uma lacuna crassa, uma respiração aflita apinhada de demónios. Foi o sangue de Vénus que empurrou a rosa para a ribalta. As conversas conducentes a uma conturbada digestão convertem Santos em Carrascos. No mesmo banquete há Neros e Petrónios.
Não há triunfo sem sangue de Vénus. Vénus aqueceu o lugar de Jesus. Tento em vão erigir um mundo com os cacos da cruz enquanto os anjos postiços açambarcam as últimas migalhas.
Estremeço quando ouço a frase medonha de que "já tudo foi escrito". Vénus, crucificada no alto da minha noite, cai-me na folha, gota atrás de gota de sangue, resgatando do anonimato uma miríade de caminhos e é vê-los, como cães de Deus, a sair de um edifício altíssimo em chamas. Bem vistas as coisas, o poema de amor é um ritual de Mitra no decorrer do qual o sacerdote debaixo das tábuas espera receber a bênção do sangue do bezerro sacrificado.
A poesia talvez tenha os dias contados, assim como toda a arte. O bloco de mármore permanecerá intocado e dele não brotará, às mijinhas, nenhum David.
"A rosa conquistara os bárbaros", a guilhotina os civilizados.
Fui à morgue reconhecer o cadáver de um tal deus, infelizmente não era o meu. De facto era um deus, um deus-cachalote. Vivo terá sido um ser magnífico, morto, um gigante murcho e fedorento.