Roberto Gamito
08.11.21
Sem feriados e sem milagres, Deus encontrava-se sozinho encasulado num ponto. Antes do Big Bang, antes de ser conhecido como o Criador, Deus era contorcionista. E poeta. Enquanto contorcionista, foi autor de uma proeza ímpar, só comparável com o hindu que treinou o seu elefante a esconder-se num porta-luvas de um Fiat Punto. Imaginem-se dobrados dentro de um ponto, sem luz nem diversões e sem margem para acariciar o maroto, durante um tempo inconcebível. É quase tão árduo como trabalhar em Portugal. Nesse estado até uma comichão pode derrotar um Deus.
Dessa altura, antes do Homem e da luz, chegou-nos este único fragmento.
Fomo-nos encerrando cada vez mais (Deus criara amigos imaginários para ter com quem conversar) na nossa acanhada existência, na secreta confiança de que, a dada altura — bastando para tal esperar pacientemente ou, por outra, acreditar na existência do Pai Natal — o mundo se nos há-de apresentar com um aspecto melhor e pejado de tascas com preços apetecíveis.
Comentário ao fragmento:
Mesmo na escuridão absoluta, Deus foi acometido por uma epifania. O que faz falta ao universo são tabernas. Em bom rigor, só há vida porque Deus necessitava de taberneiros. Cervejas e bifanas e um gajo é feliz. Aliás, se formos mais fundo, de que serve ser Deus se não podemos comer acepipes gostosos e molhar o bico numa jola? Sem isso, não andamos cá a fazer nada.
Nisto, ordenou que se fizesse luz — vejam bem o estilo do bicho, nem se digna a levantar para acendê-la, ordena. Porém recordou-se que não havia criado nada. Precisava de gerar, pelo menos, uma espécie de criaturas que vivessem ao rés dos interruptores à espera de uma ordem. Em tempos idos, quando os pais mandavam, as crianças eram obrigadas a ficar junto dos interruptores. Eram noites bem passadas, “ordeno que se faça luz” e a criança despertava para a sua tarefa, por regra aos saltinhos. Caso fosse desprovido de humor, tais acontecimentos seriam suficientes para Ele carbonizar os seres humanos; felizmente Deus está em toda a parte, excepto no twitter. Não é que não consiga lá estar, porém decidiu que a Sua saúde mental não tem preço.
Fez-se luz. No entanto, um efeito inesperado: cegueira. Teve eternidades às escuras e de um momento para o outro tudo se iluminou: parece que é parvo, o ser divino. Os olhos, habituados ao breu, não aguentaram a novidade. O acto irreflectido sai-lhe caro. Apesar da luz, estava condenado a viver num mundo que lhe recorda o início. É evidente, podia curar a cegueira num estalar de dedos, todavia a cegueira tinha um propósito: recordar-lhe do erro crasso. E além disso anda a monte porque lhe chegou a factura da EDP do Big Bang. Nem Deus, que pode tudo, tem dinheiro para custear a despesa. Há quem diga que tem vivido os últimos milhares de anos mascarado de Testemunha de Jeová. Jogada de génio, assim ninguém se aproximará d’Ele.