Roberto Gamito
15.03.21
De uma maneira ou de outra, às escâncaras ou às ocultas, o Homem está ocupado com a preparação da sua morte para que, chegado o dia derradeiro, não falte nada. O amor e a morte equivalem-se. Ao rés da morte, falamos quase a mesma língua. O mesmo é válido para o amor. Porém subsiste um grão de ignoto, o qual nos conduzirá à ruína ou à loucura via ciclo de perguntas, do qual não sairemos de pé. Uma questão sobrevive a todas as provas: será esse o grão de verdade? Esse grão de luz cifrado segundo o qual governamos a nossa vida. Há muitas formas de cair, simulacros caseiros da queda de Satã. Cada Homem, cada época pariu as suas formas de cair. Entre o nascimento e a morte, cabe-nos realizar uma síntese de uma série de trabalhos forçados. Se for elaborada competentemente, ficará o legado.
Eu sou um outro, disse o poeta, de seguida regressou à fila do esquecimento, à espera da sua vez. Por azar, puseram-nos com os leigos, os quais escorraçam a morte e o amor com acrobacias de funâmbulo vaidoso e rasteiro. Aos poucos, a nossa língua é rapinada; sobra-nos o eco, suportável apenas quando o tom é irónico.
Não lhe quero mal, mas também não me consigo decidir se lhe quero bem. Eis o que diríamos se fôssemos sinceros. De tempos a tempos, a fome adopta outro desgraçado, leia-se poeta, caído canoro emprestando o sangue ao ofício. Doravante a sua vida torna-se intransitável.
Um perfume, repescado em boas condições pela memória, quiçá o início de um novo mundo, sucumbe à realidade, acabando por agrilhoar o Homem pelo nariz. Não sou um nem cem mil. Quando muito, Ninguém; em virtude da odisseia, Ulisses.
Mas afinal o que é a vida? Provavelmente um escultor, dado que passamos de um bloco à forma humana. Uma certa pretensão de alcançar a eternidade logo refutada pelo tempo, o maior iconoclasta. O tempo, que nunca largou a marreta, é Shiva, destrói o mundo numa dança de mil braços enquanto sorri. Como sobreviver de pé sabendo que ombreamos com efémeras ideias postiças? As histórias, que contamos uns aos outros desde o início dos tempos, são dedicados paliativos.
No fim de contas, somos inúteis perante as órbitas dos problemas. O sangue, o histórico, retocado ao gosto do dia, o cérebro, uma pedra a esfarelar-se. Há choro que chegue para todas as mortes.
As mãos aquecendo, cultivando clandestinamente um outro tipo de ataque; não basta tirar as ideias do pedestal, pedir ao martelo iconoclasta a poda das estátuas, urge ousar o impossível. Vencer a morte no seu terreno, ó meus jovens kamikazes.
Como o samurai que, ao cometer seppuku (haraquiri, mas o termo preferencial é seppuku), aproveitou as horas de agonia para escrever um poema breve sobre a natureza.
À beira da morte
cantou o amor
pelas causas perdidas.
Enfim, não passamos de cronistas empenhados a coligir despedidas.