Roberto Gamito
02.08.21
O escritor começara a sentir o peso da metamorfose. Um homem — em especial um homem com ouvido apto a escutar a selvajaria — daria em leitor se fosse obrigado a mergulhar diariamente na obra deste animal.
Suponhamos, por outro lado, que a salvação não anda longe — que é alcançável por um qualquer caminho por deslindar, esteja o Ulisses ébrio ou sóbrio.
O urso enfarpelado de homem ruminava: “Se eles me descobrem a careca, estou condenado”. Qual dos mundos me coube em sorte? Esta casa de apostas ocupa permanentemente a cabeça do juiz.
Não tenciono expulsar as borboletas do mundo, pô-las a orbitar à volta de um passado desfalcado, com um suspiro feito vendaval. Tento não adicionar cacos ao há muito partido.
Olhe para isto, diz o poeta à musa, novelos de linhas e não há meio de o poema vir à tona. Não simpatizo com essa atitude de derrotado, retruca a musa enfadada. Vou pregar e seduzir para outra freguesia.
Sabia o nome de todos os vulcões deste mundo e do outro. O que poderia transformar um homem tão amigo da alegria numa criatura em queda, de pronto devorada pela lava? Uma rugosidade assídua no tecido do quotidiano é suficiente.
O Diabo presidia a uma coreografia de cem mil piroclastos desejosos de entrar na História. Cabeças, casas, sonhos perfurados pelos piparotes caprichosos do Caído.
O Inferno. O mundo despertou para este assunto. Mas por que razão alongar-me no lugar-comum?
E a catedral arruinada? Rastejamos, adulamos e fazemos vénias. De joelhos, poeta. Nem a verticalidade foi poupada.
Dizer o que se pensa é, antes de mais, um exercício vão. Por mais que tentes, as palavras certas nunca te acudirão à língua.
O discurso, um viveiro de mal-entendidos. Recomeço a respirar onde a vida é mais íngreme — o que me aquieta.
A mão paira a um palmo da folha qual pássaro. Nenhuma das possibilidades debandou. Tenho um deserto no lugar do coração e um oásis na gaveta. Aceito que os meus suspiros encalhem nas margens dos nomes pretéritos. Não passo de um biólogo que, a uma distância insegura, se arrisca a documentar a vida selvagem.
Vagabundeio por trilhos que ninguém compreendeu. Barricado na miragem, o milagre esfumou-se mal o calor afrouxou.
Aqui, nestas coordenadas incomunicáveis, não dá para escrever, quanto mais para viver. Cada linha, uma lição de como abortar o voo.
Não estou em condições de ressuscitar cadáveres tremelicantes, nem tão-pouco insuflar cachalotes murchos com a tripulação da esperança.
Por agora, apelidam-nos de loucos. Resta-nos enlouquecer para não trocar as voltas aos cérebros amedrontados. Choca-me que continuem a malhar no cadáver de deus. Por sorte, somos governados pelo acaso. Levantamo-nos bobos, acabamos o dia como reis — aproveitem, não é todos os dias.
Estamos completamente às escuras quanto ao paradeiro do amor.