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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

18.09.22

Estava estendido na valeta a pensar na morte. Um costume que herdara dos tempos de cadáver em que o amor me escorraçara sem embaraço de uma relação estável. Sonhei que me levavam para a morgue, qual faraó levado em ombros, serpenteando à fresca entre as dunas graças à força de meia dúzia de escravos. Tanta coisa para no fim acabar como morada de vermes.

Ao menos se acordasse cortado às fatias, encharcado em sangue e sem nome, num quadro de Francis Bacon, onde as formas estão desfocadas pela asma e fizesse da tela a gaiola do meu grito.

E eis-me aqui agora, vivo, a descrever minuciosamente como se não tivesse visto o fim nos teus olhos de ex-vivo. Sabia que os abutres não tardariam. A arte é fraco repelente nestas circunstâncias. Sobravam-nos os dias para fantasiar como tudo poderia ter sido de outra maneira. Ajeitei o pescoço no cepo, saboreando a paisagem que me calhara à frente dos olhos e esperei. Todavia a guilhotina não veio.

Falo de amor num poema, ou nos vários com que alimento o fogo, já começam a haver pessoas que não sabem quem é. Descrevo-o de uma ponta à outra como posso, não ignorando as miudezas, mas do outro lado raramente encontro a reacção esperada. Sim, retrucam, em tempos conheci alguém com esse nome. Que é feito dele? Herdeiros das suas sobras, contentamo-nos a enxertá-lo à queima-roupa com universos paralelos. Não é a mesma coisa. Esse amor analógico, feito de suor e sangue, é coisa do passado. Eis-nos na era digital, onde o peso é um holograma. Os gigantes e os anões ora levitam, ora ficcionam o seu legado. Ignoro quando é que foi a última vez que nos sentámos a conversar sobre raízes. Os tempos são outros, é preciso desocupar as mesas, há uma fila de referências à porta à espera, desde Dante a Tifeu, desde Xibalba a Gilgamesh, do Tártaro até ao Céu, amontoados de cidades vazias compactadas no mesmo destino; esperam os seus cinco minutos de fama, durante os quais se alimentarão do nosso minúsculo miolo. Estou consciente disso, é preciso arranjar espaço para novas levas de ninharias. A cabeça não é senão armazém mutante apinhado de bagatelas.

Tenho a sensação de que a minha obra é perecível, disse um ex-poeta, uma espécie de réptil saído das peles secas de Lucílio, diante do cadáver de Séneca. Nunca aceitem conselhos de suicidas.

Ex-vivo


Roberto Gamito

10.04.22

Riscamos o fósforo pela enésima vez, mas a humidade humilde de uma gota de água protege-o, adiando o fim. A cabeça incólume não é destino que se queira. De que vale sobreviver ao fogo se é ele que nos efectiva?

Dentro de nós um inferno em miniatura, projectos de demónios, esboços de quedas, raivas postas em discurso e o catecismo do fracasso arrancando-nos os sonhos como quem arranca asas a insectos. De ilusão em ilusão, tentamos em vão simular as asas perdidas.

Caem meteoritos que nada sabem sobre os nossos desejos, pedimos-lhes tudo e mais alguma coisa até ficarmos afónicos, todavia o mundo não é hospitaleiro no tocante às nossas vontades.

Quando a melancolia irrompe, a mão, que não tem limites nem remédio, agiganta-se — eis a farsa. Cresce até à loucura rumo à morte de molde a pormenorizar o falhanço. Haverá alegria para quem, na folha, viu nos dedos cabeças de fósforo e tentou incendiar o seu cosmos posto por extenso? Sobrará talento para quem venceu provisoriamente a morte? Com que palavras regressou desse combate?

Vida contrabandeada por gritos
ululante comédia desmantelada
tragédia que todos acorrem para ver.

Nem o truque barato do suspiro nos salva face à cratera nos nomes outrora salvíficos. Não me parece que o poeta extraia grande minério do acto de escrever, de orbitar em terrenos resvaladiços, qual pirilampo ébrio: em nenhuma das suas órbitas encontrará redenção. Homem, o animal mais fantástico deste circo — a cabeça apinhada de problemas é um número inesgotável e em constante aperfeiçoamento. Nunca faltará público para o homem sem qualidades.

As vidas improvisadas no balcão, comentadas lado a lado com o entrechoque dos copos sempre por encher. Condenados a rabujar para todo o sempre, afugentámos o amor, a felicidade e o mais com o condão de aliviar o fardo. Ao rés do precipício, os homens encenam os antigos mitos de Actéon, Sísifo e Tântalo.

Confesso que me faltam os dias que desaproveitei a ser outro. Almejei ser clandestino bobo ao rés das goelas de Deus. Os corpos caídos numa formação que alguns dirão um enigma. Seja como for, as vozes sobrevivem num refrão animalesco. Choraram, amaram, beberam e bailaram e eu fiz de conta que não havia entendido nada. Como resgatar o passado do poço da memória sem o desmembrar no resgate?

O homem, eterno peixe fora de água, ocultando o estrebuchar em danças mais ou menos artísticas, sucumbe ao engodo das luzes dos holofotes. De uma maneira ou de outra, sucumbiremos à primeira promessa armada em messias. Minúsculos seres fantasiando estaturas ao pé de megafones. A festa termina. O coração fica a sós com o teu nome. Os que fugiram ao amor sabem do que falo.

Cada verso é uma despedida cifrada, digo adeus à miríade de homens que fui sendo. A vida é um funeral onde enterramos, à vez, as nossas metamorfoses. Salivo o fogo larapiado ao inferno. A folha, ninho partilhado por facas e aves canoras, é palco onde ensaio o recomeço. Nada nos prepara para o início.

Como reaprender a respirar se o amor semeou nós de uma ponta à outra do nosso corpo? Diz-me se ainda sou o clarão noturno que se apossa do teu corpo quando te recordas do meu nome. Ovaciono com prontidão os cães que me abocanham, mas o corpo não acompanha o gesto.

Só existo quando fico do lado de fora do pensamento. Que querem que vos diga? Escorraçar-me das ideias não é um trabalho isento de perigo. E um mundo pequenino vai-me brotando das falangetas
linhas que mais parecem caminhos arruinados, juncados de cadáveres de Ulisses. Só posso falar do que não vi.

Mas para quê insistir nesta prosa regateada no mercado do eclipse, quando a morte nos morde os calcanhares sem parança?


Riscamos o fósforo pela enésima vez, Roberto Gamito


Roberto Gamito

30.12.21

Imaginei-me irremediavelmente pobre. Vasculhei os bolsos como quem procura as sobras de uma civilização perdida. Tinha para cima de setenta cêntimos; sorri, estava economicamente livre. É a sorte de viver no passado, quando o dinheiro ainda tinha valor.

Após nova busca, fiz outra descoberta. Encontrei as ossadas de um antepassado. Um antigo eu que havia esquecido. Um misto de horror e exaltação, aquele ulular engolido pela vergonha, o qual vem à tona para nos assombrar, apossou-se de mim. Apesar de marmóreo, que é o consolo dos fracassados, não podia deixar de sentir um certo desassossego.
Entretive-me a arear o passado e, findo esse trabalho, comecei a namoriscar o futuro. Perdera um ror de tempo a inventariar possibilidades, ângulos perfeitos e trajectórias para as minhas ideias-bala.

Quanto ao amor, nada de poético há a confessar. Não suporto sucedâneos nem versões diluídas, nem na vida nem nos livros, irei protestar — embora à minha maneira, cifrada ou escancarada, todavia à minha maneira — quando me tentarem ludibriar. O gato por lebre no tocante às verdades mais apetecíveis, a saber: amor, Deus e morte não me seduz.

Quando um amor antigo me escorraçou pela porta das traseiras com um pontapé magnifico no traseiro, talvez não tenha sido assim tão mau para a minha postura. O desmame foi custoso. Reerguermo-nos das cinzas é um trabalho hercúleo. Quem sabe se a solidão amarga não me terá afinado o miolo? Ou pelo menos dado condições para que, em certos momentos, consiga trampolinar até novas alturas.

Os anos passam, entre eles um salão de festas — de vaidades —, de meias-verdades, de meia-vida, de meia-altura, de meia-verticalidade; em suma, uma província de fogo incompleto na qual os seres humanos, inebriando-se com as aparências, estatutos, dogmas, reputações pensam exorcizar a morte — e todavia.

Usando o nomenclatura deles, sou um falhado. Rapinaram-me até ao tutano. Coisas há que escrevi há mais de dez anos que conheceram sucesso pela mão e pela boca de papagaios paraguaios destituídos de talento. Usando o dicionário deles, sou irrelevante. As hienas sofisticadas souberam ocultar a sua gula por cadáveres.

Tento esvaziar a cabeça de todas as guilhotinas e venenos que me povoam. Não tenciono atafulhar o silêncio de obstáculos e lâminas ou retirar-lhe a habilidade de se espreguiçar e de receber o desconhecido. Não foi a minha intenção transformar a minha mente numa câmara de tortura onde, dia e noite, a depressão e a ansiedade me torturam longe dos olhares dos demais. Seja como for, aconteceu, fugiu-me do controlo. Mais uma vez a História do Homem repete-se no homem.

Terá um travo amargo que eu, criatura apta a ir ao fundo qual cachalote, tenha de — isto é mais forte do que eu — insistir nisto, tentar afogar-me. Na profundidade onde a luz não é bem-vinda, a calma e a fúria, verdade e mentira equivalem-se, e a grandeza e a pequenez são lentas. No fundo, onde a luz foi escorraçada, a morte não tem pressa.

Regressemos à paixão. Os lábios aproximam-se fogosamente do meu pescoço, um coro de relâmpagos, gerado no coração, percorre o corpo de lés a lés. Paixão. Digo demasiado cioso da ideia perturbadora que esta palavrinha contém. Um fogo que se apresenta mínimo e cresce num estalar de dedos. Poeticamente, estou inclinado a afirmar: a paixão é a temperatura a que a carne humana arde.

À mercê dessas sensações, umas conquistadas outras imaginadas, o ser humano é obrigado a metamorfosear-se. Aquilo que sou não é suficiente, é preciso mudar.

A impotência total face ao que nos rodeia, com efeito, somos animais sem qualidades à beira da extinção. A incapacidade de chegar à nossa forma derradeira aprisiona-nos numa camisa-de-forças. Ou será um casulo? Sem comentários. A camisa-de-forças não merece qualquer apontamento.

Reservo as minhas horas mais obscuras para aprender a dançar com toda a espécie de verdugos. A morte defende-me da vida com unhas e dentes. Aproveito todos os instantes para desistir. Gostaria de poder espreitar para o interior do cadáver de Deus e perceber se há algo parecido comigo nas suas vísceras. Será possível asfixiar o futuro de tal modo que o mundo seja obrigado a inverter a marcha?

Então e se eu, nas traseiras mal-iluminadas deste século, de gatas e aos apalpões, dado que vendi a verticalidade ao Diabo, praticamente míope, fosse ao lixo catar uma nova espécie de luz?!!! Apesar de abundantes pontos de exclamação, a frase não chegou a ninguém.

Não se faz literatura com queixumes. Engulo oceano e cachalotes de um trago e prossigo, espero, fértil e criativo. Recomendaria uma cautela excepcional aos abutres, ou, pelo menos, uma inteligência ímpar no tratamento do meu cadáver aquando do saque. Um passo em falso e a minha morte trar-vos-á o dilúvio.

pobre em ouro mas rico em coisa nenhuma

 

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