Roberto Gamito
19.04.24
Se nos descuidamos, impingem-nos livralhada que calha nem terem lido. No limite, celebridades, encandeadas pela sua pretensa estatura, apresentam, de olhos volta e meia fechados, típico de afectação importada, enquanto puxam ao sentimento quando deviam era impelir à bofetada, um livro que calha nem terem escrito. Toda a gente aplaude e ninguém se enfurece sob pena de macular a grande ilusão. Suspeito que nem às gordas — sejam elas garrafais ou cósmicas — passam cartão. Não vejo isso — nem o mundo — com bons olhos: ignoro se é espírito crítico, se miopia; em todo o caso, não nos entendemos na mesma língua. Numa sessão de apresentação de um livreco em que, partilhando da visão — e amiúde da cegueira — do autor, o compincha de linhas convidado para fins de afagamento (o corrector automático, esperto, substituiu ‘afagamento’ por ‘afogamento’ e só prova que as máquinas já alcançaram consciência há muito) debita umas vacuidades pomposas para gáudio de um público faminto de obviedades, trocam-se intenções de punhetas num tom barroco, e só descansa quando elevar o escritor a génio do século, fá-lo com elogios gerais, ortopédicos, os quais servem para qualquer um e não magoa o andar. No fim aplaudimos com a cara cheia de sorrisos e nem do título do livro nos lembramos. Tal como o velho, o público do certame literário contenta-se com pouco: uma cadeira e um tipo a falar e, acrescente-se sem receio, a secreta esperança de poder lançar o bitaite trazido de casa à mínima oportunidade, qual farnel vocabular, isto e até menos que isto faz com que não arredemos pé deste festival de gagos em que não sobrevive, sequer, uma citação para contar aos netos.
Findo o prefácio laudatório durante o qual o amigalhaço destas lides o matriculou na turma dos imortais, o escritor enceta o guião pachorrento no qual singulariza as suas dores de parto num tom que deveria ser engodo para um sem-número de zaragatas. Põe à borda do prato a dificuldade, deixa-se tentar pela facilidade condescendente, durante a qual despovoa as entrelinhas com um pau, não vá alguma ideia ficar lá a minar o verdadeiro sentido das suas palavras e os leitores abalarem da sessão com mais dúvidas do que certezas, comete erros, uns a propósito, outros a despropósito, a forma mais saloia de se humanizar, de gerar empatia, tal como aprendeu em noites de insónia nesses tutoriais da internet, ele que sem eles não passa de um autómato cuja função é agradar, que é como quem diz, uma puta, e logo das mais precárias, pese embora de solicitude infinita. Não arrisca por medo, não vive por medo, não chega sequer a mergulhar na piscina dos crescidos, não saberia lidar com as críticas, cada ajuntamento é ocasião para pôr em prática o oportunismo, matricula-se em todas as esquinas, fez escola em todas as intrigas e mesmo assim, ao chegar a casa de cócoras com o cu calejado de tanta promessa e com a língua extenuada de tanto nada posto por extenso, pensa: não serviu de nada.