A publicação desta croniqueta alarmará os aspirantes a virtuoso, que os há em qualquer buraco, salvo conas, que aí mora o pecado, mas é esse mesmo o meu intento. A sociedade de cavalheiros de piça engessada tem dado à luz pelo orifício não convencional uma prosa a direito (redundância, se formos vasculhar ao latim o significado de prosa; foda-se, escrevem como se fossem viver para sempre) de tal forma enfadonha que o comércio de calmantes está nas ruas da amargura. Há dias caiu-me no colo um relato segundo o qual um distraído, um daqueles ingénuos que acredita que a ida ao bar com os amigos é sinónimo de troca de piadas e comércio de alarvidades, sentou-se e de supetão, ao embrenhar-se na conversa com os convivas, murchou-se-lhe o sorriso. As histórias acaloradas de sexo, amiúde inventadas (ninguém fode assim tanto, até o caralho mais trabalhador tem dias de folga), deram lugar a discursos propagandísticos, quer dizer, troca de bolas, as típicas de activistas de sofá. Se acreditarmos em tal coisa, essa coisa torna-se verdade, não era essa uma ideia-chave no Elogio da Loucura? O que faço eu com este manancial de piadas a formigar no meu miolo, cogitava o ingénuo que aos poucos, para se irmanar no grupúsculo de virtuosos, se despojava de tais pensamentos pecaminosos.
Longe vão os tempos em que Swift sugeriu que, em tempos de escassez, se comessem crianças. Bem apanhado: pequenitas, carne tenra e fáceis de caçar. A piada é hoje um lince ibérico. Um bicho em vias de extinção que ignora como se acasala. Não preciso, porém, de me dar ao trabalho de descrever o cenário trágico em que o Humor se encontra. É na forca, a escassos minutos do fim, que me coube a honra de ser escolhido pelas musas mais coxas, ao que pude apurar, dado que é o momento capital onde a cabeça é habitada de pontas soltas, legaram-me o difícil papel de contar o que é a vida.
E a comédia, por arrasto. Quem não consegue ironizar a sua própria imagem, desconhece-se por completo. Perde espessura e torna-se tão magro quanto uma folha branca.
O fã contemporâneo de comédia recorda-me o rico apinhado de manias que vai ao campo pela primeira vez e diz: “Venho ao campo e é só arvoredo; não há nada para ver.” No tocante ao diletante do humor, a frase é mais fina: “Venho ao sítio onde se pratica comédia e é só comédia; não há nada para ver.” Pelas suas tendências, podemos muito bem chamá-la Sociedade para o Incitamento ao Chapadão nas Fuças. Não condeno o humorista que, após ouvir tamanha baboseira, desça do palco e comece a distribuir papo-secos de qualidade, qual padeiro parisiense, ao seu público. Querem humanidade?, vocifera o comediante, tomem-na toda, agora engulam este caldo de porrada — e só vos faz é bem.
A literalidade é rei e senhor desta ligação entre artista-público. Mas não vejo rei nenhum, questiona o público. No máximo, rainha, opina outro gatuno de lugares no pódio. Seja como for, este mundo veio parar-me às mãos por acaso, logo eu que vivia no passado, apesar de todo o cuidado posto em esconder-me do presente e nunca ter agarrado nenhum papel activo no teatro da sociedade. Contentar-me-ia com o magro papel de figurante. E todavia.
Torna-se evidente que o público exigente (como se auto-intitula, ah, as ofuscantes proezas de um umbigo inchado — o médico que veja isso) e sem dentes exigirá da comédia um estilo que não lhe pertence. A comédia pode continuar a laborar desde que deixe de ser comédia. É como que declarar: “Gosto de tudo em ti, mas mudemos cada pedacinho de ti, assim não pode continuar”. O Narciso contemporâneo é um Deus tardio. Não descansa enquanto não fizer o outro à sua imagem.
O mundo evolui e a comédia deve evoluir também, como se ouve por aí em qualquer beco deste século. Evoluir para onde? Para tapar os buracos da vossa fragilidade narcísica — a qual é recebida pela mente como um narcótico? Vamos lá ver uma coisa, meus campeões: a arte não está ao serviço de ninguém. A arte não veio ao mundo do Homem para ser aia do vosso ego, não está cá para fazer festinhas — o seu verdadeiro papel é conduzir-vos, em virtude de um soco imprevisto, ao tapete.
E a arte? A arte também tem culpas no cartório. Nunca pensei que meia dúzia de néscios palavrosos, três para dizer bacoradas, três para funcionar como coro, pudessem pôr de joelhos algo tão esquivo e tão tentacular como a arte.
Mas quem é esta gente, a qual ouve as sereias pelo megafone do seu umbigo a comunicar magotes de patacoadas? A comédia não pode continuar a ser o que sempre foi? Ignoro como responder a esta questão senão com: a arte nunca é aquilo que pensamos dela, está sempre um passo atrás ou à frente. Abaixo os inteligentes! Abaixo a metáfora! Abaixo aquilo que não for um reflexo enaltecedor de nós próprios! Dinamitem os cumes, preencham os vales, não queremos sentir o desconforto da vertigem, gritam uns e outros a cavalo do pónei amputado da empatia.
Platão, como muito bem se sabe, é o maior mentecapto de todos os tempos, nem todos podemos ser brilhantes na vida, contradiz — atentem no descaramento deste bandalho — os activistas mutantes no respeitante à palavra. Então quer dizer que o problema permanece indecidido. Quer dizer que a verdade nos é inacessível, como nos afiança Goethe? Mais luz, mais luz, mais empatia, diz o Werther contemporâneo antes de estoirar os miolos. Era só o que faltava a verdade ser-nos inacessível! É possível que, uma vez por outra, já tenha mandado esta nova casta de bípedes para a casa do senhor do baixo ventre. Se isto não é ser virtuoso, e Aristóteles não me deixa mentir, gostava então de saber o que é.
Por isso lhe disse logo: Carlota (Diogo ou Rodrigo, tanto faz), estás enganado a meu respeito. Eu sou um vulto, já morri faz trinta e sete anos. Simpatizo com a tua tristeza, mas estás impossibilitado de me assassinar. É muito melhor contentares-te com uma solução mais humilde, porém com resultados mais imediatos, do que andares para aí armado em parvo — atitude que te celebrizou —, a saber: estar caladinho até te surgir uma ideia, ó traficante de citações.
A ideia prevalecente era a de que se enforcara há muito, mas nem por isso deixara de contar a sua história. Ah, caramba, fomos apanhados na esparrela da ficção, numa espécie de desdobramento literário. Quer dizer que todos estes personagens são apenas várias faces de um tipo?, questiona-se Deus ao olhar-se ao espelho enquanto pensa na humanidade.
Avancemos uns belos anos. Começou, como a História do século XXII nos há-de elucidar, com o encontro fatídico de um homem puro com uma piada no twitter. Riu-se e cometeu a imprudência de seguir o humorista para, veja-se a loucura, pôr os olhos em mais piadas. O homem puro como um anjo foi adquirindo maldade em virtude das piadas — facto confirmado por aquilo que, daqui a uns anos, se chamará “Ciência”. Achou graça a uma piada na qual a velha era espancada; começou a espancar velhos depois das cinco, que era quando saía do trabalho; riu-se de uma piada de pedofilia, tornou-se pedófilo, ele que nunca se havia aproximado de uma criança para encetar uma conversa; gargalhou com uma piada de violação, tornou-se, como esperado, violador. Semanas mais tarde escutou uma piada sobre ditadores, tornou-se ditador (esses eram os anos de ouro da ditadura, qualquer um podia mandar vir um starter pack ditador da Amazon). Por azar, num dia que até lhe estava a correr bem, escutou uma piada de suicídio e não teve outra escolha senão matar-se. Doravante a comédia como hoje a conhecemos foi proibida. Surgem rumores da existência de um punhado de locais nos subterrâneos — nos esgotos, melhor dizendo — onde se reúnem os últimos apreciadores de comédia e um cacho de humoristas que logrou escapar à purga. Na superfície, persistem os Clubes de Comédia nos quais são permitidas — apenas — piadas sobre marcas de bonés.