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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

02.06.23

É impossível dar um passo sem levar com a fanfarra de bullies, haters, críticos e toda uma corja cuja incumbência é vergar quem ousou destoar do refrão da normalidade. Coreógrafos da vida alheia.
 
O crescimento do artista é acompanhado não por um vagaroso crescimento logarítmico, mas por um vertiginoso crescimento exponencial.
O coro de críticas vai engrossando, mesclam-se tons angelicais e demoníacos, testam-se magias negras de todas as proviniências. Visto de cima, assistimos a uma espécie de simulacro de ritual fúnebre. Um caudal de necrófagos salivando, não pela morte do Homem, mas pela morte do artista. O Homem que tenta a pulso singularizar-se. O Outro tornado inferno pelo olhar dos demais.
Curiosamente, seguem esse Moisés destituído de verniz divino pelo deserto. Seguem-no a contragosto, porém seguem-no religiosamente.
Importa fazer a destrinça, há toda uma genealogia de necrófagos bípedes, cada um dos quais ocupando um lugar distinto na hierarquia da podridão. Há carcaças para todos os gostos, sejam eles requintados ou provincianos.
 
Grosso modo, o hater é um crítico sem estudos. Traduz a sua mágoa, a sua ira, o seu azedume colhido na vida remodelada pelo fado em rua da amargura; o seu ressentimento em urros quase humanos transforma-se num hino à inveja.
São picuinhas ululantes. Sem critério, disparam insultos como um bêbado em transe. No minuto seguinte, são capazes de elogiar outra pessoa (alguém que, no entender deles, não lhes faz sombra) pela mesma razão que denegriram a pontapés verbais outra pessoa. Não se espera grande inteligência do hater. É filho da cólera, precisa de dar palco à sua ira. Minutos de voo ao seu abutre de estimação.
 
O mais cínico dos observadores poderia ressalvar, não sem soltar uma risada de quem possui os trunfos na mão que, presentemente, a distância entre o hater e o crítico é quase académica, posto que a maioria de nós consome aparvalhadamente aquilo que lhe salta à frente dos olhos e raramente é capaz de o digerir. Amiúde é uma abordagem que peca por escassa.
Se o artista se vergar, a corja de abutres, a qual apostou na sua derrota, ganhará.
Nos momentos de fraqueza, a cabeça do artista é uma arena fervilhante disputada por vozes que surripiam a determinação, quiçá confiança, e substituem-nas por medo; de seguida, principiam a contaminar a coreografia com passos receosos.
 
Na nossa cabeça inicia-se uma peça, Édipo. As vozes engrossam em número e em tom. Em suma, o nosso Laio.
As vozes interiores que nos agrilhoam são esse Laio mastodôntico, esse cadáver esquisito, surreal porque cheio de vida.
A batalha que realmente interessa trava-se numa arena a que ninguém tem acesso a não ser o artista.
Numa das biografias de Woody Allen, recordo-me que ele terá dito ao biógrafo que era imune quer ao apupo, quer ao aplauso.
No fundo, encontramos esta ideia nos testemunhos das maiores mentes. Agradar o outro é uma ideia persistente num artista menor, ao passo que o artista maior luta contra o seu maior rival — a sua Moby Dick, se preferirem — ele próprio. Não é que o público não interesse, todavia, quando se tenta sobreviver com paixão, tudo o resto é acessório. O sobrevivente encontra-se sozinho com a sua fome.
 
Matar o crítico o quanto antes e regressar ao trabalho. Burilar o arpão. Desafiar o impossível; não sobra tempo para mais.
Do outro lado da história, a derrota. Ao sermos hipnotizados por uma espiral de insultos, vamos perdendo pouco a pouco a verticalidade. Quando damos por ela, o insulto já nos invadiu por alguma frincha da couraça e não demorará até rastejarmos até ao ataúde.
Descobrimos da pior maneira que a palavra é mágica. À força de a repetirmos, de a interiorizarmos (por exemplo: sou um falhado) somos vítimas do feitiço. Tornamo-nos falhados.
À parte isso, falamos demasiado. Somos quadros e pretendemos, enquanto o outro nos devora com o olhar, devolver-lhe uma legenda sem lacunas. Isso arruina a experiência do outro quando nos tenta ler. O medo de não ser compreendido arruina a experiência, seja ela de que teor for.
 

Crónica Roberto Gamito


Roberto Gamito

05.07.21

Citando Camus, a última coisa que um artista deve sentir perante a sua arte é arrependimento.  

Presentemente, tendo ou não culpa, o artista, principalmente o mediático, sente-se na necessidade de ser perdoado ao mínimo sinal de que o céu vai desabar, profetiza em cada gota uma tempestade, em cada brisa um vendaval. Antes de cometer o crime, confesso já que sou culpado. A confissão e o perdão são duas coisas muito sérias, alcançadas amiúde a ferros, após a via sinuosa das agruras, no decorrer da qual nos confrontamos com toda a espécie de venenos e demónios. A voz da confissão, soterrada debaixo de inúmeras máscaras, é alcançável só a alguém de joelhos, alguém vergado e sem ego, só aí o Homem está em condições de se confessar. Daí que desconfie de todos os artistas que se confessam à queima-roupa, num estalar de dedos. Como o mundo obedece cada vez mais às leis do espectáculo, a confissão e o perdão seguem uma lógica performática. Aqui reside uma rugosidade que, se entendida com calma, desmonta a fanfarra vigente. A confissão e o perdão são de cariz solitário, reservado. Seja no confessionário com o padre, seja na marquesa com o psicanalista, quem disponibiliza a alma para ser dissecada precisa de criar uma espécie de ligação de confiança com quem o ouve. Tal leva tempo e, acrescente-se, é impossível de estabelecer quando, do outro lado, há um monstro de mil e um olhos pronto a julgar-nos e a apedrejar-nos ao mínimo mas. Logo, o ciclo culpa, confissão, perdão é um embuste. No fundo, quando alguém é apedrejado nas redes sociais não é senão a manifestação actualizada da nossa barbárie. O Homem adora e continuará a adorar ver o outro sofrer e inventará, a cada par de anos, uma nova de forma de o executar. O lado perverso disto tudo é que à superfície são anjos que pregam a empatia quando, no fundo, onde a verdade se acoita rugiente, são demónios ávidos de assistir ao desabamento do outro. 

Se o artista foi conduzido pela fome, não precisa de se arrepender. Fez o que fez porque não havia outra forma de o fazer. Essa fome guiá-lo-á no labirinto das suas obras e cabe aos outros, os vindouros, observar, mais ou menos atentos, porém, aconteça o que acontecer, nunca poderão fazer as vezes da estrela guia. Só o artista sabe o norte que procura. 

Esta loucura ascética de ir extirpando vocábulos do discurso por, alegadamente, possuírem cariz ofensivo, quando, paralelamente, o mundo está progressivamente mais sensível, conduzir-nos-á a um estádio pueril, onde os Homens só poderão comunicar através de onomatopeias. 

Deus está morto e de todo o lado surgem substitutos com o fito de ocupar o seu lugar. Não se iludam com a inofensiva polícia da linguagem, estamos diante daquilo que faz uma religião ser uma religião.   

Em torno dos seus dedos espetados com fervor inquisitório gravitam as noções de inocência e culpabilidade. A evangelização forçada ou a morte. Ao contrário de outras mais pacientes, a evangelização actual é inimiga da burocracia, num instante se decide a conversão ou a morte por ora virtual. Como que paira um perfume no ar, a noção arcaica de que todo o Homem é um criminoso que não se reconhece como tal, contrariando, sem medo de parecem patetas, um dos pilares da justiça. Círculos de legitimação que se auto-alimentam com festivais de elogios, rituais de purificação caducos que os legitimam a apedrejar os incautos, narcisos embriagados pela saraivada de palmadinhas nas costas. Em suma, proclamam culpado tudo aquilo que não aprovam. Só há duas facções: ou és favorável ou és hostil ao regime. Ou és bom ou és mau. Não há gradações. Escolhido o lado, não poderás voltar atrás. No século XXI a redenção foi abolida. As pessoas jamais poderão mudar.    

O artista está em vias de extinção. A morte da arte foi profetizada em todos os séculos, muitos equívocos, algumas ressurreições, mas parece-me que é desta. Como pode sobreviver neste universo de censura mascarada de liberdade um animal que refaz o mundo segundo o seu ponto de vista? Deveras complicado. Ou suicida-se ou transforma-se numa espécie de maldito, um animal clandestino a combater contra o mundo. Um combate votado ao fracasso, um pouco como a vida.

E aqui surge a figura do inocente. Se todos são culpados quem são os inocentes? Os inocentes são fabricados nos círculos de legitimação, nessa nova ordem eclesiástica onde, impacientes de nostalgia e impotentes perante o mundo, decidem sem o enguiço da razão lançar tudo à fogueira, bruxas, aspirantes a bruxas, livros, diálogo, enfim, retratos onde não saiam favorecidos.   

Os inocentes são figuras adoradas não pela sua pretensa inocência, mas porque são personagens planas. O inocente é o Homem definido pelo seu gesto. Sem mais delongas e interpretações labirínticas. O medo do outro fez com que esta nova religião forjasse o inocente. O inocente ocupou o lugar reservado a Deus. O medo do outro é combatido ficcionando um novo Eu. 

Citando uma vez mais Camus, o diálogo, relação entre duas pessoas, foi substituído pela propaganda ou pela polémica, que são duas formas de monólogo. Parece que o tempo não passou por nós, continuamos os mesmo bárbaros de sempre. Tanto fica ainda por dizer…

 

o artista e a religião do politicamente correcto, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

27.11.20

O artista pleno é aquele que encontra o equilíbrio perfeito entre força e vulnerabilidade. A vulnerabilidade é uma oportunidade para ingressar no desconhecido, para que o outro te veja como ser falível e ridiculamente mortal. No limite, concretiza-se o mito de Actéon em que tu, antigo caçador, és transformado em veado e abocanhado pelos teus fiéis cães. A vulnerabilidade é um processo penoso de despojamento. A única forma de encetar uma ponte genuína com o outro. Do outro lado da ponte tanto pode vir o amor como a morte. Sem vulnerabilidade estás condenado a actuar num teatro monotonamente morno.

O Eu é a mais resistente das máscaras. Para citar Peter Handke, não faças com que tudo seja acerca de ti — fim de citação.
O ego afunila o mundo num punhado de ilusões. Não há qualquer mistificação. Só numa relação acesa com o outro é que o mundo se nos revela.

Desgraçadamente, contentamo-nos em permanecer aquém do outro, no terreno confortável do artifício.
Seja como for, avançando ou recuando, o outro permanecerá inacessível. É impossível alcançar o outro na sua totalidade. O que há é pontes — tangentes — de entendimento durante as quais pomos o sentir do outro em evidência. Com sorte, o nevoeiro tornar-se-á menos denso, mas nunca desaparecerá por completo. O outro é o centro do nevoeiro. Tal como sucede no escuro, podemos treinar os olhos para ver em condições de luz muito reduzidas. Todavia há limites. Com o outro é igual. Só podemos ver até determinado ponto.

A força é perseguir uma intuição. Uma ideia, uma paixão, alguém capaz de nos apresentar o mundo de um ângulo imprevisto. Uma força fundada pela vulnerabilidade.

 

O outro, vulnerabilidade - Roberto Gamito

 

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