Roberto Gamito
01.11.21
Comendo como gente grande as migalhas reservadas aos pardais, ao mesmo tempo que penso na fartura, afasto-me aos saltinhos de temas como a política, economia, sociedade e seus meandros. Não tenho dentes para assuntos tão duros.
A leveza com que encaro o meu fracasso como opinador assanhadamente contemporâneo diz muito sobre a vidinha dum gajo: desprezo pelas deixas vozeadas num tom de tenor e cambalachos nos bastidores dos palcos das ditas causas nobres não me seduzem. Sou mais inactual que um fóssil.
Muitos houve que dividindo a mão raquítica entre a arte e os copos não foram além de uma obra medíocre. Um livrinho a raiar o afónico, recebido pela crítica com céu nublado — que é como quem diz, sem estrelinhas. Mais maduros, já que a madurez, em calhando, também ataca o homem, abdicaram do caminho estéril da arte para se focar num outro, o bem mais promissor caminho da carraspana crónica. Quantos bêbedos famosos não devem a sua fama a tão difícil decisão. Abandonar a escrita em detrimento da bebida não é uma decisão tomada de ânimo leve. Ambas estavam lá no início. No início, não era o verbo, mas o copo de tinto. Em todo o caso, o mundo da bebida continua a oferecer mais oportunidades que a província exígua das artes. Já para não falar das cunhas. No mundo da bebedeira, o aspirante a bêbedo só necessita de vontade e disciplina. Se visto assim, o mundo das cadelas líquidas é possivelmente o último reduto onde a meritocracia consegue prosseguir a sua obra.
Quanto à verdade, procuram-na com avidez, não ficando atrás de filósofos e cientistas. Em obediência a estes novos factos, somos obrigados a remodelar com quadros e flores a nossa opinião em relação aos bêbedos. Num mundo de hipócritas, que os há aos pontapés e debaixo de qualquer pedrinha, o bêbedo é o herdeiro da iluminação, messias cujo labor é oferecer a verdade ao míope — ao sóbrio que nem uma toupeira —, a qual, tal como as saídas das mil boquinhas da ciência e da filosofia, não se percebe nada. Citemos Shiki, poeta japonês, a fim de dar aquele ar de falsa erudição: “Sinto a dor e vejo a beleza”.
Canta um galo, ao longe. Todavia, nestas províncias mais humildes, o dia do bêbedo ser reconhecido como sábio ainda não chegou.