Roberto Gamito
22.11.20
Durante um período inicial, o neófito é mantido no interior de uma confortável marmita, pelo menos segundo os padrões de um contorcionista de classe média. Durante essa curta estadia, exige-se aos iniciados que se mantenham vivos e testem piadas grotescas enquanto fitam o seu reflexo. Em condições normais, tal não requer grande capacidade, porém ponham-se no lugar de alguém fechado numa marmita cujo almoço é um punhado de alpista. Sejamos homenzinhos e admitamo-lo, não há muito a fazer dentro de um tupperware. Ou suicidamo-nos ou enlouquecemos. Entre outras ocupações ocasionais, é dada primazia aos momentos de lazer. Cabeçadas e guinchos de tenor são preferíveis ao marasmo.
O manda-chuva desse viveiro de cobaias quer provar a tese de que, se forem levados ao limite, os Homens transcendem-se, transbordando deles o elixir que os outros necessitam. Decorridas décadas após o início da experiência, já não há maneira de saber quem está vivo e quem está morto. Atravessámos a contragosto o carreiro acidentado e pedregoso conducente à verdade. Não há certezas, não há dúvidas, há tão-somente a repetição dos mesmos gestos. A ciência transformada em religião, o último ritual supremo.
Os Homens murcham como flores tristes e poucos são os que, para sublimar as trevas, enveredam pelo trilho da arte. Entretanto, em virtude dessa parafernália de experiências no decorrer das quais o miolo é espremido e servido num copo para deleite de canibais — a forma arranjada de molde a financiar a ciência nestas bandas —, o seu passado foi abolido. A tentativa de o recordar implica um castigo prontamente punível, a saber: a morte ou escutar a Maria Leal até ao fim dos tempos.
O únicos sons saídos do interior das marmitas são ecos esfarrapados, herdados de tiques verbais do cientista. Há quem diga que a música não passa de uma lenda. Originariamente, o fim da experiência seria melhorar o Homem. Persistem ingénuos, gritou um suicida antes de enfiar um balázio nos cornos. Actualmente, devido à rotatividade de cientistas e pessoal incumbido de vistoriar o viveiro de marmitas, a vida no laboratório é tão-somente o prosseguir de um hábito enraizado. A questão foi banida daqueles domínios. Todos os domingos cientistas e habitantes das marmitas se viram para um tacho cheio de feijoada bolorenta e rezam. Em nome de quem ninguém sabe. Talvez já nem procurem a redenção, apenas uma repartição da culpa entre seres vivos e imaginários, que é como quem diz, um artifício para aliviar o fardo de estar vivo.
O mundo é habitado por cientistas quixotescos que, convencidos de que admitir o erro é prejudicial à sua reputação, preferem nunca falar abertamente de nada.