Há datas que actuam em nós sem pedir licença, começando na pele e indo até ao osso, como rituais de passagem após os quais é impossível regressar ao que fomos. Se preferirem um tom bíblico, é impraticável banharmo-nos no mesmo rio duas vezes. Sejamos claros logo desde o início: esse rio, que em fauna obscura, caudal, largura e territórios por onde passa ombreia e suplanta o Nilo ou o Amazonas, chama-se Joker. É sobre esse rio que havemos de vogar com a frágil embarcação do nosso entendimento, concebida artesanalmente com o material que a selva nos dá, sabendo de antemão que, façamos o que fizermos, aconteça o que acontecer, não passaremos de um turista e nunca um animal residente nesse desconhecido. Como proceder a fim de me impedir de desistir? É uma questão embaraçosa. Tudo se afigurará inútil, entrámos no mundo pela porta das traseiras. Que é como quem diz, pela porta da frente no respeitante à arte. Como no cristianismo primitivo, estarmos diante de uma obra de arte, exige do monge um ritual de apaziguamento, um ritual, se quisermos, de esmagamento do ego. Em suma, diante da obra de arte absoluta a nossa vontade extingue-se. Não nos resta mais nada senão curvamo-nos diante daquilo que, por nos ser infinitamente superior em todos os aspectos, nos esmaga.
No dia 5 de Outubro, por volta das 16:30, no Algarve, Guia, mais especificamente no Algarve Shopping, na sala 2, na fila H, no lugar 11, fui alvo do filme Joker. Há datas que não podemos esquecer, fazem parte da nossa história — sim, não percebo a minúscula — íntima.
Mas antes de avançar para a película que nos trouxe cá, convém determo-nos na cerimónia que preludia o seu visionamento. A espera. Fui com a minha mãe, a qual tem passado uns últimos tempos não muito católicos graças a uma doença crónica de que é vítima, e, como ambos padecemos do vício da pontualidade doentia, isto é, temos de estar nos sítios, não na hora marcada, mas uns belos minutos antes, deu para ver pessoas igualmente à espera. De repente e sem que o guião da vida nos avisasse para o que aí vinha, salta uma pessoa não sei de onde, qual lebre do meio das silvas, e atira-se a ela enlaçando-a num abraço encetando um ritual de asfixia. Fazia-se acompanhar dos seus dois filhos. Deu para reflectir, para ginasticar o cérebro antes da derradeira prova — o filme, enfim, aquecer os neurónios. Tratava-se de uma antiga colega de trabalho da minha mãe, de há mais de 20 anos, que, sem aqueles pruridos que são próprios da malta mais nova, na qual eu me incluo a contragosto, se atira em direcção ao outro para dar minutos ao coração. Assistir de camarote ao teatro das mães a demorarem-se no abraço, uma delas supostamente a minha, um gajo nunca sabe, desculpem o spoiler, a gastar energia e alegria à parva, situação que contrastava bizarramente com a inacção e com, porque não dizê-lo logo sem peias, o cinismo ocultado sob o manto do sorriso semi-amarelo dos três filhos, o qual já não é totalmente amarelo por causa das aulas que a vida nos deu. Para empregar parlapié científico, aquele momento deu ares de ser uma espécie de fóssil vivo. Não era suposto aquilo existir. Não me entendam mal. É claro que, presentemente, as pessoas se abraçam, mas abraçarmo-nos assim à queima-roupa, sem querer nada, após tanto tempo, mesmo com a dúvida a assolar-nos a cabeça — será que esta pessoa é mesmo aquela que eu penso que é — não é deste tempo. O medo de sermos julgados, de parecermos ridículos aos olhos dos demais torna-nos impressionantemente mecânicos. Cumprido o prelúdio, afinquemos os dentes e as unhas no filme.
Como não aprecio por aí além o apedrejamento, quer ocorra no mundo dito real ou quer ocorra no mundo virtual, devo avisar-vos que, aqui e ali, surgirá um spoiler mais ou menos cifrado, ou até mesmo às escâncaras. Se sentem uma comichão interior a assolar-vos a alma sempre que se deparam com os paladinos do cochicho cuja missão é devassar a experiência que é assistir ao filme, quer dizer, fruir do grosso e do detalhe com doses substanciais de surpresa, devem parar a leitura aqui; e, quem sabe, retomá-la, daqui a uma semana, um mês, quando virem o Joker. Feito o inevitável aviso, vamos prosseguir.
O que o filme nos põe diante dos olhos é a pressão da sociedade sobre um homem falhado. Não nos enganemos com estórias da carochinha, a vida, se não nos deixarmos hipnotizar com os mil matizes e vernizes, não é senão a jornada de um Homem aflito. Se quisermos aprofundar a ideia anterior, a vida do homem é a relação com as suas aflições, as quais podem ser passíveis de ser verbalizadas ou não.
Como escreveu Canetti na magistral obra Massa e Poder, logo na primeira linha, Nada o homem receia mais do que ser tocado pelo desconhecido. E continua: Uma pessoa quer ver aquilo que lhe toca, quer ser capaz de o reconhecer ou, pelo menos, de o situar. Em toda a parte, o homem evita ser tocado pelo desconhecido. Sobretudo de noite ou no escuro, um contacto inesperado pode levar o susto a transformar-se em pânico. Todas as distâncias que os homens criaram em seu redor foram ditadas por esse receio de contacto.
A personagem principal, interpretada com crepitante maestria por Joaquin Phoenix, é um funâmbulo em fim de carreira. Utilizando um jogo de palavras do qual não me orgulho, a sua vida no fio está presa por arames. No início do filme, o palhaço e o falhado não são ainda a mesma pessoa. Vêem-se as costuras. Apesar disso, a longa convivência do falhado com o palhaço fez com que os tiques passassem de um para o outro. A imagem inicial do palhaço a correr desesperadamente, com os característicos sapatões, após ter sido alvo de uma brincadeira maldosa que descambará em pancadaria, é a ilustração perfeita de um falhado.
Há, para usar uma expressão cara a Tolstói, uma conspiração de detalhes que inspira a arquitectura da razão de Arthur Fleck a manter-se de pé. A mãe debilitada, um respeito mínimo por alguns dos seus colegas de ofício, o seu programa de TV preferido, a ajuda psiquiátrica. Alvo de humilhações várias, é alguém que está no limite. A sociedade teima em não perceber que mais tarde ou mais cedo a vítima da humilhação se vai virar contra ela. Um mecanismo, grosso modo, semelhante ao recalcamento. Aquilo que tentamos esconder de nós mesmos, mais tarde regressará para nos amaldiçoar com uma força decuplicada. Dante, esse poeta entre os poetas, escreveu, no seu livro Vita Nuova, algo que nos ajudará a não nos desnortearmos neste nevoeiro.
Eu tinha meus pés naquela parte da vida
onde não se pode ir com intenção de regressar.
Deixemo-nos de criancices, basta de sermos estafetas de vocabulário cuspido à desgarrada, regurgitando alarvemente palavras como empatia, inspiração, privilégio, incentivo, como se fôssemos fantoches treinados para respeitar a mão que nos controla nas sombras, como se o mundo não passasse de um teatro de Robertos; chega!, há um ponto a partir do qual não podemos ser salvos. A redenção tem raio limitado. A luz não chega a todo o lado. Há demasiados ângulos mortos. Recordo-me de um texto de Blaise Cendars, onde alguém, após viver por demasiado tempo no abismo, passa a um estágio para lá do suicídio. Tanto se lhe dá se morre se permanece vivo. Atingido esse patamar, o homem já não é bem um homem, é um animal ímpar, arrepiantemente imprevisível. A História da literatura e da poesia está prenhe de casos em que homens e mulheres foram humilhados até mais não. Há casos de poetas que nasceram com uma resistência de um Deus e que, por força de serem humilhados diariamente sob a prensa do mundo, sobre a qual a sociedade dança, não tiveram outro remédio senão abraçar a loucura. Até o mais forte de entre nós acabará por ceder. Coitados dos fracos!, que não passam de carne para canhão.
No decorrer deste século manco, embalado pelos vícios que herdou dos séculos passados, há sistemas de ideias (à falta de melhor termo, contentemo-nos com este arremedo) que foram ganhando uma certeza missionária e intolerante, outrora na posse da religião. Há uma ideia muito moderna, a qual acredita que as palavras criam realidades assim que são proferidas. Daí o medo crescente de certas palavras, de certas expressões, ou frases. Parece uma ideia inovadora, intelectualmente possante, contudo não poderiam estar mais errados. Não é senão uma forma medieval de encarar o mundo que nos rodeia, acreditando piamente que a palavras são mágicas e que, num ápice, e sem outra explicação que não a própria magia, têm o condão de interferir no tecido da realidade. Nada muda, na verdade, como muito autores já escreveram vezes sem conta. O que sucede é uma actualização das verdades, de crenças, entre outras coisas. Se quisermos, visto estarmos numa maré de blasfémias, podemos dizer que estamos em plena Idade Média Subtil. Acreditamos, novamente, na magia. Somos incapazes de discernir entre palavra e magia. Só não o dizemos abertamente porque tememos o ridículo. Daí ter sido necessário arranjar outra forma de dizer o mesmo. Eis um parêntesis curto no qual ponho a minha apoquentação por escrito e falo de forma simplista do modo medieval usado por muita gente quando avalia cheia de tremuras e de ego insuflado uma obra de arte e, ganhando balanço para profecias dignas de um profeta decapitado, começa a cacarejar eventuais reacções do público à mesma. Uma obra de arte, por definição, tem inúmeras leituras. Os paladinos da empatia e das boas intenções têm de se esforçar mais: ou lançam fogo a tudo, passando por bibliotecas, museus e tipos que distribuem flyers, ou nada feito. Querer impor a nossa leitura de uma obra de arte aos outros, que, por mais genial que seja o autor da interpretação, pecará sempre por escassa e, eventualmente, desnecessária e palavrosa, vai beber muito ao charco onde o ditador mata a sede. A corrente do isto-só-pode-ser-assim já fez muitos mortos ao longo da História, e só não fez mais porque alguns dos falecidos tiveram o desplante do ressuscitar, ah!, maganos dos génios.
Gradualmente, e sem misericórdia, tudo aquilo que sustenta a vida precária de Fleck foi desmoronando em virtude das facadas. Os heróis de Fleck morreram quando o esfaquearam pelas costas. A conspiração de detalhes esfumou-se. Caiu-lhe a máscara, fundiu-se ao palhaço. Chegara o derradeiro momento: exibir aquilo que o ser humano esconde sob todas as inúmeras máscaras: o rosto precário, para pedir de empréstimo um termo de Eugénio de Andrade.
A loucura atirou para longe o manto colectivo que tenta abafar o fogo interior das paixões que, de uma maneira ou de outra, nos acabarão por consumir.
A tensão nunca se afasta muito. Sentimo-la a percorrer o labirinto subterrâneo de nós mesmos, principiam a aparecer, aqui e ali, no olhar, nos tiques, no discurso, fendas no nosso eu. Aquilo que somos é frágil, estupidamente frágil; nos piores dias, podemos ser quebrados por uma brisa. Em situações limite, somos palco de uma luta, jaulas no interior das quais esbracejam loucos, pondo à prova a resistência do cárcere. Por vezes o louco selado dentro de nós solta-se. Umas vezes conseguimos capturá-lo e tudo volta mais ou menos ao normal, se bem que persistirá, vívido, o episódio em que fracassámos como guarda. Lançamo-nos em demandas infindas no intuito de tentar perceber o porquê da jaula ter cedido. Não há nada para perceber. Tal como o mundo, o manto está coberto por uma fina crosta. Sob a aparente tranquilidade existe o reino turbulento dos metais em ignição. Onde a crosta é mais frágil costumam nascer vulcões. Aqui acaba a relação entre Homem e mundo. No caso do Homem, este precisa de exorcizar futuras explosões. Necessita de esconjurar uma catástrofe que se avizinha e da qual já sentiu réplicas enfermiças. O riso é um dos rituais de exorcismo. Quando este falha, a coisa muda de figura, a razão começa a cantarolar o fim.
E aí, com sentido ou sem ele, ingressando ou não na esfera do absurdo, — como Meursault de Camus, urge relembrar aos catraios deste século que é mais aquilo que nos foge que aquilo que logramos capturar na teia do sentido; equívocos sucedem-se, viciados que estamos em injectar sentido naquilo que nos amedronta — , sucede o inevitável, a explosão. Ao contrário da erupção, não é algo bonito de se ver. Do fundo para a superfície, as paixões magnificadas pelo animal encarcerado libertam-se das amarras, dos garrotes, dos açaimes e atiram tudo pelos ares. Há pedaços de jaula, do nosso antigo eu, espalhados por todo o lado.
Se a memória não me prega partidas, o Kung Fu pode ser visto como uma espécie de dança de onde são eliminados, pouco a pouco, os gestos desnecessários. É uma coreografia perfeita. Não consigo imaginar outra forma de descrever a performance de Joaquin Phoenix. Não há um gesto a mais. No papel de Joker, Phoenix executa, diante dos nossos olhos desacostumados a esta entrega devocionária à arte, uma dança perfeita. Decorre diante das nossas pupilas galopantemente mais gulosas, aquilo que o actor fixa na tela, o inimitável, tal qual o trabalho do pintor ao registar o que viu em certo lugar, certo dia, a certa hora, com cores que não voltaremos a ver. Assistimos ao desenrolar de uma alma. Outros escavarão mais profundamente e dirão coisas, suspeito, mais acertadas. É tão-somente a minha leitura.
Após deslindar que sempre vivera uma mentira, quebrou o ciclo do falhanço através da loucura. Enfim, não vemos as coisas, vemos partes e suprimos as lacunas com informações rabiscadas em cima do joelho; limitamo-nos, o mais das vezes, a ler etiquetas que complementam o quadro sem perdermos tempo a perceber se quadro e legenda se contradizem.
Os bons e os maus da História estão sempre sujeitos a revisão. E duas versões antagónicas do mesmo personagem podem coexistir, seja lado a lado, seja em planos diferentes, uma à superfície, outra no subterrâneo. Não há dinastias eternas. O bom pode ser mau de um momento para outro. Aliás, o bom pode ser mau e o mau pode ser bom consoante a leitura. A reputação pode ser a farpela que permite ao mau ser visto como bom. Para o falhado, que raramente tem acesso à indumentária da reputação, é mais complicado.
Joker, o qual já está acima desse jogo de máscaras, revela sem querer as contradições da sociedade relativamente a si própria, quando, lá para o final do filme, alarga o sorriso graças ao sangue.
Um pouco antes do fim, os habitantes da cidade de Gotham transformam-se em animais, não são necessariamente loucos. É a massa em todo o seu esplendor. Num mundo atomizado, em que a distância que dista entre uma pessoa e outra é enorme, é risível verificar que, citando mais uma vez Canetti, só juntos (os Homens) se libertam dos fardos que são as suas distâncias. Com a descarga, (neste caso a humilhação que veio à tona sob a forma de fúria), são suprimidas as separações, e todos se sentem iguais. Essa é outra questão que fica no ar. Será que só o sangue consegue juntar homens que de outro modo se desprezariam?
Chorei, mas não tanto como gostaria. O ruído das pipocas não consentiu que os silêncios me perfurassem o estômago com um arraial de murros. Bom filme. Dêem-lhe a classificação que quiserem, puxem fogo às redes sociais, estrebuchem na vossa ou noutra língua, nada disso importa. Joaquin Phoenix é uma estrela.