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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

27.09.25

O comediante estava feliz. O público ria sempre. Estava preso num gif. O inferno do mesmo.

Ele: Fazes o meu tipo, mas...
Ela: Mas o quê?
Ele: ...turbei-me.

A boneca insuflável sente-se enojada pelo namorado, um homem normal. Apanhou-o na sala com um cão de porcelana.

Orfeu: Olha, vou contar aquela piada racista. Foda-se, Eurídice, outra vez. Já te tinha dito para não olhares para trás. Que inferno, pá.

Ironia macaca é ser mecânico, passar os dias debaixo dos carros e morrer atropelado.

 Sublinho as partes menos importantes dos livros. É uma forma que eu arranjei de nunca me esquecer que sou parvo.

Apostar em mim é como apostar num cão de porcelana numa corrida de galgos. É simultaneamente patético e risível. Uma boa aposta, portanto.

A química e física das relações esporádicas. Tinha umas mãos de ouro. Apesar disso, ela não reagiu.

Um homem a partir dos 40 é um boneco de neve. Duas bolas e gelo.

Adorava ser homossexual só para poder dizer: Ando à procura do meu Van Damme. Alguém que me dê luta e abra as pernas como ninguém.

Época balnear.
A água estava tão gelada que a tatuagem da coruja que habitava a coxa voou até ao bosque.

O hip-hop abriu-me os olhos para muita coisa. Sem ele dificilmente descobriria as infindas possibilidades de acampar um boné na cabeça.

Antes do Big Bang, Deus não tinha tempo para nada.

O infantário é um estúdio de tatuagens não permanentes.

Estou a contar os dias até que uma feminista se lembre de propor a alteração da palavra “Encé(falo) para algo como “Encécona”.

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Roberto Gamito

19.09.25

Continuo a preferir os porcos mealheiros às strippers. É muito mais difícil enfiar dinheiro num corpo em movimento.

O gato ginasta. Deu 7 mortais para trás; ao oitavo morreu.

O hemofóbico venceu o seu medo. Finalmente cumpriu o seu sonho: ser serial killer. Uma inspiração.

Atirei o pau ao cão. O gato ficou surpreso, o cão contente. E pus o castor a chorar.

Entrei numa loja de sofás. O empregado olhou para mim e senti-me desconfortável. Péssima publicidade, péssima publicidade — pensei. E saí.

Não somos mercadoria, somos pessoas, garantem os mais optimistas, sentados num sofá feito de paletes.

“Entre o bem e o mal uma rosa.” Não é o amor que nos salva, mas o Mascarado da Sailor Moon.

Sem cenoura, o boneco de neve transforma-se no Voldemort. Um homem frio. E sem nariz.

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Roberto Gamito

17.09.25

O falecido só vai à frente, no carro funerário, para ninguém confundir o cortejo fúnebre com uma manifestação de ninjas.

A electricidade também é uma droga. Deixa muita gente agarrada.

Consentir que o outro fale até ao fim.
— Eu sou um homem da ciência...
— Que engraçado, eu também.
— Oculta.
— Ora, foda-se.
 
No circo havia um número com um casal de fumadores. Um fazia anéis de fumo; o outro, tigres.
 
No zingamocho da bazófia.

A egípcia gostou de mim. Não me espanta, no Egipto os gatos sempre foram venerados.

Trabalhava noite e dia para conseguir aquilo que sempre sonhara. As maiores olheiras do mundo.

Estava tão incerto da sua capacidade de ser humilde que, além das lições de humildade que recebia da vida, tinha explicações de humildade.

O deus Marte morreu. Guerra à sua alma.

O Super Mário é canalizador, mas onde ele ganha mesmo dinheiro é no Parkour

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Roberto Gamito

13.09.25

Passado o auge da popularidade, o coro de encómios que tantas línguas seduziu e amestrou, podemos ver, vencido o ruído, as falhas do seu gesto. Que obra, que mediocridade ímpar.

Durante tempo de mais estive a leste das quezílias, mastigando com desdém a rosa dos ventos com um semblante de quem já viu tudo e não sabe o que fazer com a fome. O mundo está nas últimas ou prestes a começar: são coisas de averiguar.

Dou-me conta que os coitos publicitários metidos a despropósito com fins de aumentar a ninhada de seguidores de figuras de porcelana chegam a mim sob a forma de uma procissão de comichões que percorrem sem pudor o meu corpo de lés a lés. As palavras engolidas recalquei-as ao transformá-los em sapos barulhentos. O inconsciente é um grande cortejo de Dioniso.

Vacilando na orla do inferno, afastei o olhar, mitificando o vulcão. A minha queda criaria novas espécies de aves que me acompanhariam até às portas do Orco num canto rente ao humano.

Aqui me têm, mais velho e ocasionalmente engaiolado, aprisionado entre os parênteses dos horários e da eficácia. Sísifo das 9 às 6 e Ícaro em pós-laboral.

Não há cronistas das orgias pagãs. Transcrever a folia é matá-la. A palavra fica de fora. A palavra é para o frio e para o ameno. Em registo infernal só resiste o bicho treinado na escassez. A fartura dilui a selvajaria. Isto na selva. Ao rés deste discurso, uma procissão de anjos a abanicar-se cheia de calores.

As palavras deviam enroscar-se nos gestos até não sabermos onde começam umas e acabam outras. O ar-condicionado da religião cristã achatou-nos o potencial. Mais fogo, mais fogo.

O sonho do bobo: a minha língua dará à luz uma ninhada de regicidas.

Ao fazer-se ao piso do pretenso gigantismo intelectual, ao pedir de empréstimo uma verticalidade surripiada num sem-fim de coordenadas de molde a insuflar o vácuo de canto, um nada que fique no ouvido, roubou a luz às plantas indefesas.

 

(transcrição de um episódio do podcast Duchamp, disponível no Spotify e afins)

 

Estou a escrever coisas mais encorpadas no Substack

 

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Roberto Gamito

01.06.24

Novo episódio do podcast Tertúlia de Mentirosos. 

Carlos Moura. Humorista.

Deambulámos por uma enormidade de temas, a saber:

São Bernardo e resgate de pessoas, Os cães e a necessidade de agradar, Somos a raça que quer morangos o ano inteiro, A culpa e o activismo, O progresso é amiúde adicionar prateleiras, Santa Casa e NFT, Amadorismo na política, 25 de Abril, Abundância mascara a miséria, Países nórdicos e minimalismo, Usar termos ingleses, A musicalidade do português do Brasil, Dissecação da expressão “isto está a dar prejuízo”, gestor no palco da economia, Os números tornaram-se subjectivos, escola Monty Phyton, Empresas e o culto do ego, Gestor elevado a ídolo, Linguagem positiva e a comédia, Pulseira do equilíbrio, Programação neurolinguística, Fernando Rocha, Palhaço Slava Polunin, Bit sobre o Rei dos Frangos, Rever as primeiras actuações, Bit do Duarte Pita Negrão, “Queremos músicas inteligentes", Comédia para não chatear ninguém e a superioridade forjada de quem faz humor negro, Marcos Bilro e a Maddie, Afinar a actuação consoante o público Crowdwork: solução ou problema?, Masterclass de Crowdwork, crowdwork é funambulismo, Dara Ó Briain, “Uma das coisas que mais me custou na comédia”, Noites más, O riso que ando à procura, Perguntas, “Demorei anos até encontrar uma persona em palco”, IA e comédia, Processo criativo 

Ouvir episódio aqui:

 


Roberto Gamito

02.05.24

Novo episódio do podcast Tertúlia de Mentirosos. 

Ricardo Araújo Pereira.

O ponto de partida para esta conversa foram os livros Coisa Que Não Edifica Nem Destrói e A Doença, o Sofrimento e a Morte entram num Bar - Uma Espécie de Manual de Escrita Humorística, ambos escritos pelo RAP.

 

Deambulámos por uma enormidade de temas, a saber:

Teorias sobre o riso - Incongruência e superioridade, As piadas são à custa de quem?, Cães à antiga e cães vestidos, Superioridade forjada, “A melhor decisão que já tomei, Glossário de palavras que nas redes sociais significam uma coisa e fora das redes sociais significam outra, “Humorista” e “piada”, Filme The Social Network; Seguidores, redes sociais e sede de sangue subtil; Swift e Jimmy Carr, Nós deixámos de perceber que uma piada é uma piada?, Aversão ao cerebral, Expressão “consumir comédia”, A autenticidade autêntica e autenticidade pechisbeque, Evolução de um bit do Dave Chappelle, Isto é Gozar com Quem Trabalha, Benefício de Dar Peidos de Swift e o prestígio do tema, Filme Patterson (1), O que podemos esperar de uma piada, Para que serve a coisa X, Prestígio da eficácia, “Eu não gosto muito do programa, aquilo é só para fazer rir”, “A verdade foi privatizada”, A grande obsessão humorística da Joana Marques é a vaidade", A ideia segundo a qual a comédia é ferir, Brincadeiras à volta do mito de Narciso, Episódio do fascinante podcast “Coisa Que Não Edifica Nem Destrói” - Afinidades entre Comédia e Pugilismo, “O soco é muito pedagógico”, Kickboxing e confiança, O combate e as indicações dos treinadores, A palavra ‘delirar’,  ‘músculo’ e ‘alarme’, (O livro de moscas sobre o qual o RAP fala sempre em tom elogioso será brevemente editado), Piquenique e moscas, O humorista é um activista anti-pompa, Questionários de Verão, Preguiça e rancor, Conhece-te a ti mesmo é uma paródia de Dioniso?, Eufemismos e novas formulações para dizer as coisas de sempre; A comédia é concisão? Exemplo contrário; O valor da repetição na comédia, Jacques, o Fatalista de Denis Diderot, Mil e Uma Noites e Xerazade, Recomendações de livros - Era Bom que Trocássemos umas Ideias sobre o Assunto de Mário de Carvalho, Os Cadernos de Pickwick de Charles Dickens, O episódio das cerejas do Mixórdia de Temáticas, Dois totós a falar parvamente sobre livros de humor pouco conhecidos e/ou esgotados. 

Ouvir episódio aqui:

(1) Poemas Escolhidos de RON PADGETT, Assírio & Alvim 




Roberto Gamito

20.04.24

Quando éramos homens, e havia algum prestígio em permanecer vertical, os predadores, sejam eles de nomeada, com obra feita ou aspirantes a tal, ou perdedores, como dizem os disléxicos activistas, e as presas amiúde geradas pela fome do outro, ninguém estranhava o seu lugar na cadeia alimentar, o mais antigo labirinto sem esquecer o talhante de bata ensanguentada, quando a sobrevivência era clara e não um poema de quem tranca uma vida lá dentro, antes de o advogado tomar o lugar do fabulista no lugar de intérprete de animais, numa altura em que os pais abandonavam os filhos na floresta com o fito de engordar as bruxas e os trilhos de pão eram recebidos pela fome de aves e bichos menores, o mundo, nem por isso, era muito diferente do nosso. 

Vivemos em plena era onde o conforto migrou para todos os vértices e arestas cortantes. A título de exemplo, a literatura, antigo pugilismo solitário, ringue onde o leitor se agredia com golpes remotos de malucos generosos, os quais queriam, acima de tudo, o nosso bem, metamorfoseou-se num spa no qual o leitor, espremido qual laranja algarvia, se espoja entoando o refrão do ego. Durante um ritual mais ou menos sofisticado de afagamento, depende das eras, depende dos preços, o leitor é bombardeado com elogios que, de outra forma, não os receberia. Eis o abismo, o mundo não está para nós, e a arte — não haja receio de usar aspas — fala para nós como se fosse uma mãe protetora, capaz de ir, vejam bem até onde vai a ternura do capitalismo, ao limite de entender o nosso dialecto de soluços e ranho. Posto isto, dada a ração semanal de literatura carregada de verbos engessados, de adjectivação mansa, não é de estranhar que eu seja incapaz de destrinçar a barata tonta da barata sensata. Interpreto a rapidez da barata quando se cruza com o humano tal como quando o adolescente levado em ombros pelas hormonas é apanhado pelos pais que juraram chegar tarde e, ao ouvir uma porta aberta que não estava nos planos, num instante se adapta favoravelmente, mantendo, por ora, o cadastro limpo. Nunca conheci uma barata tonta, a barata sabe sempre ser barata, seja aqui ou ao rés de um cogumelo radioactivo. Há um homem nas redondezas, é para fugir — parece-me sensato. 

Os cães começam a ladrar, incentivando outros a fazer o mesmo, e desse modo cria-se uma rede de latidos que cresce enquanto houver cães disponíveis para a chinfrineira. A vila, que dava ares de civilizada, com um pé neste século e outro no futuro, supondo que chega cá inteiro, não nos fiemos nas empresas de entregas, gradualmente foi despertada, casa a casa, para um coro de animalidade. Em fechando os olhos, diríamos que a vila retrocedeu até ao estado de selva. Partindo do princípio que houve um motivo para os primeiros cães começarem a ladrar, não é de descartar a hipótese segundo a qual os primeiros cães continuem a ladrar só porque há outros cães a ladrar. Ladramos porque outros ladram, e é tudo.
E eis que fui conduzido pelo pensamento rumo à crítica literária. Uma rede de críticos que se criticam mutuamente, sendo que o primeiro, alegremente, criticou um livro provocando uma avalanche de críticas. Não obstante a beleza da tempestade, o leitor do dito livro que originou esta pugna verbal, dá-se conta que andam a usar o mesmo punhado de citações pilhado a um crítico primevo e ninguém foi à fonte verificar se havia minério ou ouropel. Ladram porque outros ladram, e é só. 

E eis que entro numa casa de banho pública, nas paredes da qual foi sendo coligido, sem agenda, um enorme cadáver esquisito. Surrealistas de bexiga aflita. Eis algumas das pepitas. 
A castidade não valoriza o pénis, pelo que não posso considerar o homem enquanto objecto. A democracia é a arte de cortar irmãmente o bolo até ao átomo e bramir ‘já vos matei a fome’. Somos animais sociais, expressão a necessitar de uns retoques, no entanto, grande parte das cenas de pancadaria nascem num ambiente de convívio, logo não contem comigo para festas. Se as mulheres pararem de me ignorar, paro com os poemas — ganhamos todos. Não tenho penteado para ter inimigos. O Júlio tem tanto carisma que até os peidos são citáveis. Há anos que ando a matar perdizes com os mesmos cartuchos. Esta última tem-me tirado o sono, confesso. 

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Roberto Gamito

07.04.24

Pedi com voz coxa, amparada pelas muletas tipo e imagina, fruto de lábia extenuada de andar a impingir isto e aquilo aos néscios, um café à homem contemporâneo, sem princípio. De uma penada confeccionei crítica social e parodiei Borges, o escritor argentino. Ainda não está suficientemente profundo, comentei ao fitar o café com as mãos de quem vai dar início ao mergulho. Das duas, uma: ou ganho uma medalha ou conduzem-me para o hospício, fosse como fosse, a parvoíce é olímpica.

Língua insubmissa, pese embora o corpo agrilhoado, vícios de quem ambiciona subir pela hierarquia acima, para desprestígio do cu ontem bem reputado, e o corpo é que paga!, manietado no colete-de-forças da eficiência — caiu-nos um problema (desafio, caso vos tenha calhado a fava de ‘empreendedor’) no colo. O problema órfão encontrou em mim um pai adoptivo, e assim se vê como anda o mundo das ideias. A empresa faliu por ser incapaz de oferecer morada a tanto desafio. Das cinzas desse negócio nasceu uma casa de criadores de conteúdo.

Com os joelhos a tremerem que nem varas ao serem coreografadas pelo vento, como que a prefaciar a grande conversa ou uma foda há muito desejada, o clima, ameno, não pedia preservativos nem gorros. Décadas a aturar manetas, a cuspir aos ouvidos dos apardalados o mesmo refrão capitalista para que me levem as bagatelas das prateleiras, anos a deixar-me ficar para trás nesta maratona a que uns, não sem vergonha, apodam progresso, um sem-número de restos de música que transbordavam dos bares, sítios onde vamos à noitinha prosseguir com as buscas, a felicidade que não há meio de aparecer, tudo isso fazia esquecer-me que a velhice — essa cabra multiforme que nos esculpe desfavoravelmente qual escultor sem talento, um escultor só Parkinson, recorda-me do que sei, que é como quem diz, o meu mundo cabe à larga num bolso. A vida é uma tragédia em plano inclinado, o potencial ficou lá atrás.

É agora, questionou a mulher de peito farto. Deixa-me só encostar o mundo às cordas, bramou o poeta armado em pugilista com os calções na mão, consente, filha, que despache o mundo numas linhas, que eu já te atendo.

Numa esquina dessa história cuja luz daria à cena, caso fosse fotografada, o estatuto de memorável, a velhota corcunda, tipo caracol com a mania da verticalidade, vistoriava a montra atulhada de bolos com paciência de relojoeiro. Não tenho tempo para nada, excepto para bolos, aí aprecio a ponderação, eis uma legenda para a cena a piscar o olho a Fernando Pessoa.
Um bolo de arroz e, sem transição, aquela “ainda agora se divorciou e já anda com outro.” Como se as mulheres fossem obrigadas a um período de pousio. Durante uma temporada não se plantarão nabos nessa cona, eis o que deveria vir no Borda d'Água. Deixa a mulher em paz, interrompi eu, agricultura é vida.

Era um homem a desnovelar os segredos do cosmos ao balcão entre berros, pancadas e perguntas. Pediu marisco ao taberneiro só para ter o gostinho de escutar um delicioso ‘vai para o caralho mais o teu gosto requintado’. Antes disso havia estado em casa a homenagear o compasso, a descrever círculos em todas as divisões, pi, pi, caralho, clamava quando cumpria a volta.

E a bifana vem ou não vem, perguntava alguém furibundo, há horas que ando a mobilar as tripas a cerveja e tu, tasqueiro só patilhas, não me desenrascas nada para entreter os dentes.

Outra velha que não a outra, esta segunda velha não parecia de porcelana, porém não estava viva. O cão empalhado exibia o seu melhor ar de desconfiado. A perdiz está amalhada. O restolho devolve-nos um som de cinema a cada passo. Não há lebres a acordar para o espanto de quem foi passear ao mato com o fito de espairecer e foi abalroado com o facto de o mundo, que não se importa com nada do que é humano, ter mais vida que um colhão no auge.

A fauna do sítio era vasta e merecedora de descrição mais avultada. Com o porquinho no colo, o pastor novo-rico dotado com tiques de celebridade de redes sociais trouxe o porco directamente da pocilga para a pastelaria e não admite crítica, vi lá fora, logo faço também, o bêbedo, o qual empestou a visão com vídeos de Instagram viu há dias uma dondoca a passear o seu piruças aprumado numa mala e, para fazer um brilharete, transporta o seu mini bobi desleixado cujo pêlo nunca conheceu escova num saco plástico grande e transparente como quem transporta um peixinho dourado para casa mas antes atesta a pança de bagaço. Patinhas a dar a dar, lindo, turistas, zero, o que era um descanso para a alma. Cafés e bolos a preço de local. De seguida, acordei e dei uma volta.

 

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Roberto Gamito

10.12.23

Tempos houve em que a criança da cidade, ao pronunciar-se acerca da proveniência do leite, respondia com a incompreendida deixa “vem da fábrica” e era prontamente alvo de um sem-fim de larachas e azedumes. Independentemente da corpulência ou da idade do catraio, a criatura em flor transformava-se num alvo indefeso dum circo apalhaçado, no qual o deboche vertiginoso dava mostras de incansabilidade.

O adulto, especializado em problemas desta estirpe, vinha em socorro da realidade e declarava: “o leite vem das tetas da vaca”. E mais: o adulto não se coibia de adornar a sua resposta com um acrescento já célebre: “actualmente, não sei o que é que as crianças aprendem na escola”. Não vou mentir, também eu, animal amigo da paz excepto nos dias de folga, engrossei o refrão da turba sem titubear. O adulto é um bicho que raramente perde a oportunidade de se mostrar superior aos demais. Mostrar-se conhecedor da origem do leite é uma oportunidade tão boa como outras, aliás, capaz de ombrear sem medos com outras questiúnculas, a saber, quem foi Newton e qual o seu legado, enfim, a altura ideal para exibir o crachá precário de homem inteligente. No entanto, o adulto pouco mais sabe sobre a jornada do leite que a sua origem. Sabe que o leite pinga da teta do bovino, sabe que sucedem vários processos de permeio, coisa que é incapaz de especificar sem se atrapalhar e sem fazer uma impecável figura de parvo, e sabe que essas gotas, mais tarde, hão-de parar no copo.
Aqui chegados, é preciso ter em conta que, se a criança não é grande espingarda em termos de raciocínio, o adulto, o qual, acreditando nos livros, também já foi criança, não é melhor, uma vez que já se esqueceu de tudo o que aprendeu em garoto. A criança pode não saber nada, no entanto, do outro lado da barricada, temos o adulto, alguém que salta de bitaite em bitaite, passando ao lado de qualquer coisa que se assemelhe à verdade.

Perante o perigo de perpetuar esta injustiça, tomei corajosamente a decisão de tirar as mãos da cabeça, que lá estavam com o fito de enfatizar o espanto, pô-las no bolso, para sublinhar que não há pressa, e encaminhá-las rumo à folha a fim de rabiscar o meu parecer de perito em assuntos aos quais ninguém parece passar cartão.

Dirijamo-nos ao fulcro da coisa: as crianças da cidade têm razão. O leite vem, actualmente, de fábricas. Quero pedir desculpa em nome de todos os adultos, comediantes, palhaços amadores e pessoas que se deixaram levar, qual cadáver sem personalidade, pela maré do escárnio. Se forem habitantes deste século, que nem é dos melhores em matéria de vistas, não vos terá passado despercebido o aparecimento de inéditas espécies de leite, nomeadamente leite de aveia e amêndoa.

Tal prova, ao contrário daquilo que inúmeros biólogos costumam dizer, gente que anda na ciência sem amor e com os olhos desfocados a pensar que o mundo é uma exposição de quadros abstratos, que os mamíferos ganharam. Dêem a coroa de todos os reinos, animal, vegetal, monera e restantes aos mamíferos. Já não constitui novidade para ninguém, os mamíferos ganharam uma reputação tal que até as amêndoas se alistaram no partido das mamas.
Como apreciador de mamas desde tenra idade, conhecedor da sua polivalência terapêutica, acolho com agrado o facto de as amêndoas terem feito implantes mamários; as mamas nunca são de mais. E, sem mais, o elogio pela delicadeza e a paciência de quem tem como ofício ordenhá-las.

Não obstante a satisfação que é verificar o avanço das mamas até sítios inesperados, urge lermos a situação à luz dos nossos dias. Será uma jogada de marketing ou o jugo do patriarcado a abater-se sobre as inocentes amêndoas que, a fim de continuarem relevantes nas redes sociais, precisam de arranjar mamas para exibir no Instagram e quejandos? Se for isso é triste, embora me faça rir. É o mundo que queremos deixar como herança aos nossos filhos? Um mundo que obriga a aveia, amêndoas e outras da mesma laia a tornarem-se mamíferos?
Como é que os vegetais e frutos que não aderiram à moda de virar mamífero reagem a esta situação? Tremo só de pensar na pressão a que devem estar sujeitas as novas amêndoas por parte das amêndoas mais conservadoras.
Enfim, só não fico mais doente porque bebo leite de vaca e este, felizmente, está pejado de antibióticos e medicamentos. Seja como for, os estúpidos putos da cidade estavam certos. O leite vem da fábrica. Foram, sem que o soubessem, profetas. Espero que um dia essas crianças, hoje talvez adultas (sei lá, há pessoas que se recusam a crescer), as quais, amarguradas e revoltadas, enveredaram pela via do crime ou do veganismo em virtude do trauma de terem sido tão violentamente gozadas. Desculpem, crianças, os adultos não sabem o que fazem.

 

(10 de Dezembro de 2019)

 

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Roberto Gamito

17.11.23

Não entendo o festival de parangonas à volta dos escândalos políticos: corromper e ser corrompido são actividades que merecem remuneração — é trabalho. 

Ao trocar o modesto Peugeot 106 — não confundir com o opulento Peugeot 106, o qual passa pelas lombas com o vagar de uma princesa — pelos altos voos da corrupção, tudo isso patrocinado pela TAP, e só nos orgulha, dá-nos a conhecer a propensão para o deslize da malta que decidiu enterrar o dinheiro no tuning. Em faltando os recursos vindos de mãos sujas no entanto generosas, contentam-se em fabricar um avião caseiro segundo os altos padrões estéticos da Joana Vasconcelos após uma noite mal dormida. 

Eu, que me sinto mais ignorado que um parecer de um biólogo em altura de escavacar zonas protegidas, sabia, à semelhança do MEC, que o tomate ia acabar. Entrementes, raciona-se ketchup mais à esquerda numa batalha de guiões de fraca qualidade. Ao esburacar a estrada para o futuro, o nosso ex-primeiro ministro revelou o seu lado budista, obrigando os portugueses a concentrarem-se no presente.

Portugal, que nunca foi grande, mergulhou, graças à incerteza política, no mundo quântico. Cada pigarrear é uma bola de pêlo figurada — uma homenagem ao Gato de Schrödinger. Em termos mais provincianos, o político podia socorrer-se de uma verdade absoluta. As coisas pioram com o tempo. A culpa é dele, do Tempo, que é um espatifador omnipresente. 

António Costa fala em abstracto, eu respondo triângulo, círculo, Rothko, Playstation. O que leva ao delírio virgens, gamers e espelhos. 

Pessoas saltam da piada para a ética e de seguida para o plano legal. Aplaudo: eis um belo exemplo de parkour intelectual. 

Empatia, vocábulo que é pau para toda a obra, esteja ela parada ou a correr pelos corredores da burocracia, tornou-se ubíqua. Segundo o entendimento de pessoas precipitadamente entendidas no assunto, pedir desculpa humaniza o homem e o político. Pela lógica, Nuno Markl seria o mais humano de nós todos. Raciocínio ousado. Invejo os politólogos: a sua ingenuidade sobreviveu aos estudos e à vida adulta. Se no caso do Wally o desafio é encontrá-lo, na empatia o desafio é precisamente o contrário. Ofereço um jantar se não a encontrarem no discurso político. 

Noutras coordenadas, que é como quem diz, nos arredores do nosso fado, o grupelho chegano foi brindado com pontapés, empurrões, água, sumos. Em Portugal, chama-se a isto protesto aceso, em África ajuda humanitária. Se houvesse serpentinas, estaríamos no Carnaval de Loulé. 

 

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