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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

10.12.23

Tempos houve em que a criança da cidade, ao pronunciar-se acerca da proveniência do leite, respondia com a incompreendida deixa “vem da fábrica” e era prontamente alvo de um sem-fim de larachas e azedumes. Independentemente da corpulência ou da idade do catraio, a criatura em flor transformava-se num alvo indefeso dum circo apalhaçado, no qual o deboche vertiginoso dava mostras de incansabilidade.

O adulto, especializado em problemas desta estirpe, vinha em socorro da realidade e declarava: “o leite vem das tetas da vaca”. E mais: o adulto não se coibia de adornar a sua resposta com um acrescento já célebre: “actualmente, não sei o que é que as crianças aprendem na escola”. Não vou mentir, também eu, animal amigo da paz excepto nos dias de folga, engrossei o refrão da turba sem titubear. O adulto é um bicho que raramente perde a oportunidade de se mostrar superior aos demais. Mostrar-se conhecedor da origem do leite é uma oportunidade tão boa como outras, aliás, capaz de ombrear sem medos com outras questiúnculas, a saber, quem foi Newton e qual o seu legado, enfim, a altura ideal para exibir o crachá precário de homem inteligente. No entanto, o adulto pouco mais sabe sobre a jornada do leite que a sua origem. Sabe que o leite pinga da teta do bovino, sabe que sucedem vários processos de permeio, coisa que é incapaz de especificar sem se atrapalhar e sem fazer uma impecável figura de parvo, e sabe que essas gotas, mais tarde, hão-de parar no copo.
Aqui chegados, é preciso ter em conta que, se a criança não é grande espingarda em termos de raciocínio, o adulto, o qual, acreditando nos livros, também já foi criança, não é melhor, uma vez que já se esqueceu de tudo o que aprendeu em garoto. A criança pode não saber nada, no entanto, do outro lado da barricada, temos o adulto, alguém que salta de bitaite em bitaite, passando ao lado de qualquer coisa que se assemelhe à verdade.

Perante o perigo de perpetuar esta injustiça, tomei corajosamente a decisão de tirar as mãos da cabeça, que lá estavam com o fito de enfatizar o espanto, pô-las no bolso, para sublinhar que não há pressa, e encaminhá-las rumo à folha a fim de rabiscar o meu parecer de perito em assuntos aos quais ninguém parece passar cartão.

Dirijamo-nos ao fulcro da coisa: as crianças da cidade têm razão. O leite vem, actualmente, de fábricas. Quero pedir desculpa em nome de todos os adultos, comediantes, palhaços amadores e pessoas que se deixaram levar, qual cadáver sem personalidade, pela maré do escárnio. Se forem habitantes deste século, que nem é dos melhores em matéria de vistas, não vos terá passado despercebido o aparecimento de inéditas espécies de leite, nomeadamente leite de aveia e amêndoa.

Tal prova, ao contrário daquilo que inúmeros biólogos costumam dizer, gente que anda na ciência sem amor e com os olhos desfocados a pensar que o mundo é uma exposição de quadros abstratos, que os mamíferos ganharam. Dêem a coroa de todos os reinos, animal, vegetal, monera e restantes aos mamíferos. Já não constitui novidade para ninguém, os mamíferos ganharam uma reputação tal que até as amêndoas se alistaram no partido das mamas.
Como apreciador de mamas desde tenra idade, conhecedor da sua polivalência terapêutica, acolho com agrado o facto de as amêndoas terem feito implantes mamários; as mamas nunca são de mais. E, sem mais, o elogio pela delicadeza e a paciência de quem tem como ofício ordenhá-las.

Não obstante a satisfação que é verificar o avanço das mamas até sítios inesperados, urge lermos a situação à luz dos nossos dias. Será uma jogada de marketing ou o jugo do patriarcado a abater-se sobre as inocentes amêndoas que, a fim de continuarem relevantes nas redes sociais, precisam de arranjar mamas para exibir no Instagram e quejandos? Se for isso é triste, embora me faça rir. É o mundo que queremos deixar como herança aos nossos filhos? Um mundo que obriga a aveia, amêndoas e outras da mesma laia a tornarem-se mamíferos?
Como é que os vegetais e frutos que não aderiram à moda de virar mamífero reagem a esta situação? Tremo só de pensar na pressão a que devem estar sujeitas as novas amêndoas por parte das amêndoas mais conservadoras.
Enfim, só não fico mais doente porque bebo leite de vaca e este, felizmente, está pejado de antibióticos e medicamentos. Seja como for, os estúpidos putos da cidade estavam certos. O leite vem da fábrica. Foram, sem que o soubessem, profetas. Espero que um dia essas crianças, hoje talvez adultas (sei lá, há pessoas que se recusam a crescer), as quais, amarguradas e revoltadas, enveredaram pela via do crime ou do veganismo em virtude do trauma de terem sido tão violentamente gozadas. Desculpem, crianças, os adultos não sabem o que fazem.

 

(10 de Dezembro de 2019)

 

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Roberto Gamito

08.04.22

Fazendo fé nas conclusões de travo alimentício da consultora Nielsen, a qual monitoriza as compras de três mil lares portugueses, e futuramente as compras de três mil hostels, o consumo de frutas e legumes diminuiu nas famílias com filhos, privilegiando a aquisição dos produtos de conveniência, a saber: refrigerantes, conservas e take-away, que são, para usar a expressão de Clara Viana, do Público, facilitadores do dia-a-dia. Aqui principiamos a divergir ligeiramente. Embora reconheça que alguns dos produtos nos tornem a vida mais fácil, cito como exemplo uma lata de atum, a qual é uma espécie de MacGyver que desempecilha a refeição em situações que de outra forma seriam impossíveis de resolver para uma pessoa cujo lema da vida é “mexer-me o menos possível”. Se a vida melhorou drasticamente após termos conhecido a lata de atum? Não nos precipitemos na resposta. É uma relação longa, começa na universidade ou até antes e acompanhar-nos-á, suspeito, o resto da vida. Logo terá todas as características de uma relação duradoira, tanto as boas como as más. Creio ser despiciendo sublinhar que a aura romântica que paira sobre as conservas rapidamente desaparece. Falo por mim, sempre que desfruto desse singelo pitéu que consta no menu do desenrascanço, sou arrastado aos solavancos por uma imaginação contrariada rumo a um cenário de guerra em que estou a fruir da minha última refeição. E eis que choro profusamente. Não adivinharia, nem nos meus mais célebres pesadelos, que a minha vida seria essa. Acabar os meus dias a comer atum num casebre abandonado enquanto espero pela morte e ouço Maria Leal.

Há, continuando a pastorear os olhos no artigo, motivo pelo qual encetei esta prosa suculenta, um aumento dos produtos exímios em insuflar a pança, tais como: chocolates, batatas fritas, bolachas que existem para, momentaneamente, tapar o buraquinho existencial. O número de suicídios seria mais elevado se não houvesse estes paliativos. Nunca tive, que me lembre, ideias suicidas enquanto estou a estraçalhar uma tablete de chocolate. Depois de a comer é outra conversa, mas é uma questão de comprar a maior tablete possível. Teorizando um nadinha, posso assegurar que, se comprarem uma tablete de chocolate infinita, nunca mais pensarão em coisas tristes.

Que vida a criança teria se, além do típico conselho paternal “não fumes, não bebas, não te drogues” fosse aconselhado a enveredar pela via marginal logo desaconselhável da fruta. A criança não teria alegria nenhuma para continuar a viver neste mundo empestado de regras. E sabem como são as crianças. Pode acontecer, não digo que em cem mil catraios não haja um que goste de fruta, que se delicie em abocanhar citrinos e assim, mas, debaixo da mira do olhar desdenhoso e inquisitório dos seus ranhosos colegas, opta por recalcar o seu amor pelos legumes e pela fruta. Moro no Algarve, onde há citrinos aos pontapés, e do que me lembro dos tempos de escola, descartando as memórias das pessoas boas e das professoras boas, supondo que são coisas diferentes, não me lembro de muitos episódios em que o Dário ou o Alexandre pudessem descascar clementinas sem serem importunados. Supondo que a geração actual de putos é superior à minha nesse aspecto, sim, estou disponível para realizar esse salto de fé, que não importunam os outros, pois têm assuntos mais sérios a tratar, como estar concentradamente alienados ao smartphone, ou a realizar directos para o Instagram, levanta-se outra questão. A questão da socialização. A fruta não promove a socialização. Ninguém se aproxima de um puto e diz: Orienta-me aí um gomo de tangerina. Ninguém. Nós queremos relacionar-nos com os outros e a fruta e os legumes não constituem grandes catalisadores. Pelo contrário: são inibidores. Daí não constituir espanto para mim que os putos enveredem pelos Kit Kats e pelo tabaco. É o que levamos da vida. Histórias. Histórias com outras pessoas. De que me serve morrer com um corpo a abarrotar de vitaminas se ninguém quer meter conversa comigo? Isolei-me do mundo por via de ter criado uma barreira de clementinas, bananas e maçãs, pensará o miúdo que seguiu uma vida saudável. Viverá dentro de um casulo de fruta e um dia brotará, de dentro do casulo, uma borboleta bisonha da espécie Carmen Miranda.

E a mãe que diz “comprei estes abacates a pensar no meu filho” é uma mãe que não ama a sua cria. Ai eu faço-te lembrar um abacate?, pensará o filho quando confrontado com esse pensamento. Mãe, não me conheces. Eu sou um ser doce, dirá o garoto. Daqui em diante quero que te lembres de mim quando passares pela secção das gomas, concluirá o puto.

Ou então os pais detestam os filhos e estão a tentar matá-los seguindo os trâmites legais, a única forma socialmente aceite de matar um petiz: não lhe providenciar comida saudável. Não me oponho, só quero saber se é preciso aquecer o biberão de coca-cola.

A fruta não é amiga das crianças, Roberto Gamito


Roberto Gamito

11.06.21

Bem, deixem-me que vos diga uma coisa, seus fedelhos.
Presentemente, os bebés são estupidamente sobrestimados pelos pais. No século passado, os pais nem sequer sabiam os nomes dos filhos. Alguém podia trocá-los por cães de louça que levariam meses a darem conta do sucedido. Os cuidados de que são alvo são apertadíssimos. É como se as crianças fossem droga que precisamos de fazer chegar aos pontos de venda habituais. Contudo, antes disso, urge ter cuidado com a bófia. Vamos lá ser sérios uma vez na vida: os bebés, ao contrário das drogas, não têm valor comercial. Sei bem que os traficantes de menores discordam, mas é a minha opinião.

Embora não veja qualquer valor nesses homens em botão, reconheço a sua diversidade. Citemos alguns exemplos de putinhos:

1) Putinho suicida.
A maior parte dos putos pode ser incluído neste grupo. Naturalmente, o puto é uma criatura que salta de tentativa de suicídio em tentativa de suicídio. É inegável que têm uma fixação pela asfixia. Suspeito que o sonho deles é morrer sufocados. O que empreendem para realizar o seu sonho de se suicidarem em tenra idade? Tudo, não são homens de onomatopeias, são homens de acção. Põem na boca a primeira coisa que agarram, a saber: peças de lego, fruta demasiado grande e rija ou um vibrador, caso a mãe seja mais descuidada com as suas lides masturbatórias.

2) Putinho larápio.
Uma espécie muito inconveniente de catraio. Regra geral, chegam a casa de um estranho e principiam a abrir gavetas como se procurassem algo de valor. Se os quiserem ver como agentes da autoridade, levam a cabo uma espécie de rusga. Há uma razão para isso. O agente anão afadiga-se à procura de mamas nos armários e nas gavetas.

3) Minibárbaro empinocado
Nos anos 80 e 90, crescíamos como bárbaros. Joelhos esfolados, roupa suja, lutas com paus, pedradas à desgarrada: eis como eram as nossas tardes. Como paga, recebíamos um arraial de bofetadas.
Actualmente, há uma casta de putos que faz muitíssimo pior, porém os adultos não lhe podem dizer nada, chegam a ponto de os incentivar. Se uma criança estiver prestes a degolar o taberneiro, ninguém pode dizer: “Puto, não faças isso, estás a aleijar o homem”. Os pais podiam levar a mal. Acrescente-se a isso que o bárbaro está empinocado da cabeça aos pés com a roupa da moda.

Eis uma pequena amostra da fauna de putos do século XXI.
Como podemos combater estes selvagens?
Por exemplo, sou a favor de veículos sem cintos de segurança e das travagens bruscas. É por essa razão que antigamente tinham tantos filhos, sabia-se que bastava uma travagem para pôr termo ao problema. Hoje são os cintos, as cadeiras e o mais. Houve um tempo em que ninguém se importava com a segurança das crianças. Eram bons tempos.

 

3 tipos de putinhos, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

10.06.21

As festas para crianças são uma espécie de tortura vanguardista excepcionalmente cruel. As vítimas — os adultos — não podem chorar nem gritar, enquanto os carrascos — os putinhos — riem a bom rir. Não fosse o álcool e essas festas seriam palco de suicídio colectivo. Suspeito que até o mais fervoroso crente é capaz de concordar com esta ideia: “Deus está em toda a parte, excepto em festas de crianças”.

Quem são os palhaços nessas festas? Um palhaço que se dedica a estes certames de catraios é uma figura triste. Estudou para ser um digno palhaço de circo, sonhava com a vida de nómada durante a qual saltava de cidade em cidade, porém teve de se contentar em tentar — ênfase no tentar — divertir putinhos ranhosos. Além disso, há putos que os detestam. Que vida degradante é essa? Actuar para um público que nos despreza ou odeia. Creio que faz falta um documentário centrado nestas figuras destroçadas pelos carniceiros pequenotes.

Mas não nos esqueçamos dos infantários. O que é um infantário senão um manicómio para seres humanos em miniatura? A prova de que o infantário é um local destinado a acolher pequenos maluquinhos é a farpela. Vestem-lhes bibes para que se distingam das pessoas sãs (até ver), os educadores de infância.

Os pais acham que os filhos adoram sopa. Ignoro de onde retiraram isso. De certeza que não recolheram dados no terreno, até parece que não têm filhos. Os putos fazem o que lhes compete, comunicar dentro das suas possibilidades o facto de detestarem sopa. A criança faz tombar o prato no chão, desperdiça a sopa que lhe põem na boca e, se tudo falhar, vomita. Qual é a reacção do pai a este teatro? O meu filho adora sopa. Enfim, nunca convidem pais para jogos de mímica.

Quando o filho é pequeno, os pais estão em negação. O bebé borra-se nas cuecas, vomita, arrota como um bárbaro profissional e chega mesmo a andar de tronco nu numa pastelaria. Como resposta a isso tudo, os pais dizem sem réstia de vergonha: “Estou muito orgulhoso”. Já que aqui estamos, aproveito para vos perguntar uma questiúncula que tanto me apoquenta: até que idade podemos dizer que sentimos orgulho em alguém que defeca enquanto está à mesa? O orgulho só faz sentido se os pais tiverem prisão de ventre e não conseguirem esconder a inveja em relação ao filho cagão.

O mundo está como está porque ninguém tem coragem de entrar nos infantários e gritar: “Vocês, putinhos do caralho, são uns merdas. Achei por bem avisar-vos, os vossos pais não podiam continuar a enganar-vos. Um resto de uma boa tarde. Podem continuar com as vossas brincadeiras.”

Há uma altura em que os pais vigiam os filhos 24 horas por dia. São como que seguranças não remunerados da celebridade em miniatura. O seu trabalho é evitar que os putos se metam em alhadas, a saber: partir coisas, levantar saias a mulheres, tombar garrafas, entre outras coisas que por norma associamos a vândalos. Num mundo justo, as cadeias estariam apinhadas de putinhos.

A vida de universitário, se ajudada pelo álcool, é uma segunda infância. Regressamos às quedas, aos balbucios e aos vómitos.

Por favor, não me contem as façanhas das vossa crias. Nem hoje, nem amanhã. Nem nunca. Vamos lá ver se a gente se entende de uma vez por todas: eu não leio biografias de gente interessante e agora vou perder tempo a ouvir as proezas de caca dos vossos rebentos?! Repara, diz a mãe, o meu filho pronunciou o seu primeiro monossílabo. O que posso responder numa altura dessas? Fico muito feliz por vocês, riposto eu a morrer por dentro, se o vosso filho quiser já pode criar uma música brasileira.
Não me macem com os conseguimentos dos vossos filhotes, a menos que ele tenha entrado à socapa na mansão da Playboy e tenha passado a noite a saltitar de teta em teta.

“O meu filho entende tudo, é muito inteligente!” Sim, aos 5 anos já percebe tudo, até que os pais são uns pacóvios.
Calma, acho precipitado ver genialidade num animalzinho que pouco mais faz que rir e cuja obra está reunida, não em volumes, mas em fraldas. Ou: “o meu filho é tão inteligente, olha para ele a mexer no tablet”. De seguida, o putinho levanta-se, desata a correr e dá uma cabeçada na televisão. Como se fosse um pardal. Eis o vosso Einstein.

Os putos são altamente permeáveis àquilo que ouvem. É como ter um papagaio novinho em folha. Com uma diferença substancial: regra geral, os pais não querem que a primeira palavra do putinho seja cona — o que para mim é incompreensível.

Apontamentos sobre os putinhos, Roberto Gamito

 

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