Roberto Gamito
30.04.21
É torturado em perfume numa cama de memórias. E nelas nos deitamos como em cruzes. Isolado, apartado das convenções, o eremita cozinha o jejum da cintura para baixo. Corta!
Opondo a barreira da convicção contra o rio caudaloso dos dias, as ficções, umas levadas em ombros, outras em estandartes. Eis que sobraram os esqueletos das ideologias pretéritas. É preciso ter dente treinado se o fito é consumi-las. Corta!
No labirinto da mente, imola-se uma ideia desesperada. A sua correria pelo dédalo alumia os cotovelos do mito. O rosto da morte é revelado nessa fuga vã. Corta!
Foste perdendo o gume, nem pode dizer-se que te apanhe de surpresa, concordar com tudo, seja veneno ou perfume, carne ou osso. Personagem, tu reages às coisas de modo bastante bizarro. Peço desculpa, não sobreviverás à carnificina das emendas. Corta!
Agora atraiçoas o menino que foste. Tornado mestre na arte da guerrilha, apunhalaste sonho a sonho a tua vida. Corta!
És já incapaz de musculada dança. Precipício e palco soam-te a sinónimos. Orlas o gume como um desvairado, apoucando a carne.
Cumpridas as leituras, o desembarque de um novo homem. Olhos regressados da faina. Homem a braços com um cachalote. Já foi feito. Corta!
Com ou sem alegria, a escrita é um mausoléu. O rescaldo, o somatório de cavaleiros da triste figura. Que bela alhada em que nos metemos. Os moinhos golearam-nos. Corta!
A ideia que tínhamos do pássaro
desmorona-se ao vê-lo empalhado.
Estou grato pela oportunidade de frequentar este filme. Cachalotes dão à costa como se o oceano os regurgitasse. Não me atrapalhem, tenho uma morte à espera. Que cérebro é este por detrás destas palavras? Que mão é esta por detrás da mão?
A língua, mais rebelde que o costume, treina a aterragem na folha no arame farpado. Corta!
Segundo os meus cálculos, a vida ia a meio. Estava lá, mas morta qual cerveja sem gás. É tempo de correr além do casulo do eu e dar aos passos um desígnio. Precisávamos de um período para recobrar o fôlego. Corta!
Submissos, comemos aquilo que não nos dão. Leigos cheios de tiques de intelectual, intelectuais postiços, a última coreografia do pó. Apesar disso, ainda crente na arte. Corta!
Lanço as mulheres que fui incapaz de amar ao fogo crematório a fim de desimpedir os corredores da memória. Eu vi-me extinguir às portas do paraíso. Grande parte de mim foi incinerada por ideias suicidas. A depressão, essa, escorraçou-me da minha jornada. Calcorreei os bastidores de todos os cadafalsos à procura de uma morte que me servisse. Quão imbecil me tornei deste então. Corta!
De relações cortadas com o mundo, careço de forças para propor uma definição alternativa para o amor. Não obstante, tenho as minhas lutas. Aliás, estou disponível para pugnar as altas escaramuças intelectuais. Com efeito, sou o que — ou quem — precisarem como adversário. Corta!
Se é realidade palpável ou construção, não me questionem. Não tardará o ajuste de contas. Admiro qualquer forma de castigo divino. Não escarneço nem desmonto a cruz. Noutros tempos mais inocentes, apossar-me-ia dos atalhos cozinhados pela indignação, tentando o elevador da superioridade postiça. Tudo obedece ao faz de conta. Crianças calejadas na burla. Corta!
Eu e ela? Pouco nos separava de sermos carrasco e vítima.