Roberto Gamito
06.06.22
As ideias são muitas vezes perdidas entre os solavancos do raciocínio. Por mais suricatas que sejamos, há sempre um drongo a minutos de iniciar o ludíbrio. Caramba, logo agora que me havia habituado a devorar escorpiões sem passar cartão ao veneno. Já que os peregrinos nunca chegaram a Cantuária, nem Ulisses à sua Ítaca, nem tão-pouco o homem ao coração da mulher, sobram-nos os restos empoeirados dos últimos sermões desesperados. O porvir é um território deserto, irrespirável mas com boa pinga. O exegeta castigará com acrescentos o leitor, afogará o desgraçado num rio de patacoadas em letra miúda. Este prelúdio tem uma dupla ambição: turvar as mentes engessadas e obter folga humorística que pacifique o espaço entre a lâmina e a carne. Joyce e Sterne: eis dois pios exemplos, os quais gravitam excentricamente entre o eixo carne-mente qual cometa furibundo. Hospitaleiro, o texto tornado carne sussurra ao olho desdobrado na casa de espelhos: espero que retires da leitura um recreio inesperadamente infrene.
Inspirados em Xerazade, desejosos de manter a cabeça em cima dos ombros, manias!, filósofos cospem arraiais de citações poupando o fôlego de pensar pela própria cabecinha, artifício sofisticado que lhes permite olhar para trás sem serem transformados em estátuas de sal — e eis que uma fanfarra de aspas ocupa, por momentos, as ruas do conhecimento e algumas cabeças desocupadas. Que entretidos estamos com as silhuetas do eco. De pronto, as ruas ficam de novo vazias.
À margem destes episódios, os cultivadores de linguagem popular semeiam caralhadas na cara dos embasbacados. A hipótese de, nesses momentos, haver nas redondezas um escritor ávido de verter para uma língua mansa a cena ebuliente, por exemplo, passeando ainda na mesma rua, uma janela incendiada por uma mulher a flautear o pau recém-chegado e a ensaiar aquilo que mais tarde se chamará relação ou um deus decapitado pelo verso de um poeta obscuro: nada disto deve ser descartado. Ciclicamente a tese do eterno retorno é posta de lado. É inegável que ter convivido de perto como uma miríade de demónios e fantasmas me havia metamorfoseado num inferno ambulante. Afinal o que é o Homem? Pondo na borda do prato os episódios destoantes de cólera e paz, o sangue posto por extenso e elevado a hino, o coração melodiando o itinerário que une um sem-número de camas numa constelação de gemidos e frustrações e o cérebro alquimista tentando em vão transformar as dores nos ossos em ouro, ficamos com meras migalhas. Se abríssemos poeticamente o Homem de uma ponta à outra da sua História, veríamos que não passamos de primitivos. No mundo interior, uma balbúrdia de mãos, género Cueva de las Manos. E mal não se tem portado, para quem pretende permanecer engaiolado. Grande Homem!
Em jeito de homenagem a Chaucer, aqui começa o bobo a contar.
Ou a cantar, depende da qualidade da pinga.