Roberto Gamito
26.05.21
Olha: conseguimos! Alcançámos a primeira frase, vencemos a folha em branco. Elevámos os deuses aos píncaros e afinal é tão fácil ser criador. Fingir, fingir cada vez melhor. Pós-modernismo, pós-pessoas, pós-isto-e-aquilo. Fui tão alegre por esses dias como vocês foram tristes. Ou vice-versa, dado que os critérios destinados a avaliar seja o que for sucumbiram há muito.
Reparo num urinol. Não sei se posso mijar nele. Já mijei muitas vezes nas calças devido a essa indecisão. Cabrão do Duchamp!, digo eu a rir.
Numa noite de cavar olheiras, naquelas horas onde orbitamos, furibundos com ânsias de nos despenhamos, à volta do nosso nome plantado na folha, a minha morte abandonou-me, deixando-me a sós com a vida. Os vindouros saberão usá-la, à morte, com moderação, quase mansa e sem dentes.
Estarei vivo ou morto? Mas qual é a instância habilitada para decidir ou decretar semelhantes juízos? O corpo humano é uma obra de arte, que é como quem diz, irmão do urinol.
Caindo onde os gigantes passeavam, como que ensaiando a vida póstuma, despedaçado contra as montanhas para gáudio das hienas, as quais não me consentiram a escalada, todavia ainda zombando da queda do Diabo, a língua sai tumefacta com fúria de quem percebeu finalmente as regras do jogo, numa relação saudável com a lâmina. A relação com o mundo, a qual tomou o lugar da utopia, faliu.
Mas quão lestas são as ideias de suicídio quando comparadas com as outras? Sem arabescos nem notas de rodapé, intenções perfeitissimamente editadas.
Ergo-me teoricamente, a trajectória da verticalidade conquistada é descrita no quadro de ardósia. Matematicamente feliz. Isto é tão fraudulento que é de incendiar as escolas e as vanguardas.
O mundo esboroa-se aos meus pés enquanto testava a minha força na folha, reificava aves delirantemente negras e paisagens como casas de espelhos. Diríamos estar perante uma perfeita bifurcação. Ou fingíamos um sentido, ou seguíamos na peugada de John Cage em 4’3’’.
Nenhum tema, nenhuma imagem, nenhum gosto, nenhuma beleza, nenhuma mensagem, nenhum talento, nenhuma técnica, nenhuma ideia, nenhuma intenção, nenhuma arte, nenhum sentimento
nenhum batimento cardíaco, nenhuma vida, nenhuma morte, nenhum deus, nenhum gesto, nenhum verdugo, nenhum anjo, nenhum precipício, nenhuma miragem, nenhum oásis, nenhum deserto, nenhuma ampulheta, nenhuma guilhotina, nenhuma fonte salvífica,
nenhuma interpretação, nenhum par de pernas abertas, nenhuma linha musical, nenhuns olhos perscrutadores, nenhuma divindade insondável, nenhum fogo, nenhum mistério, nenhuma caverna, nenhuma projecção, nenhuma ideia parva de eternidade, nenhum urinol, nenhum monte de merda a fazer-se passar por arte, nenhum amo-te, nenhum baile de máscaras, nenhum rosto precário, nenhum jogo de perder as estribeiras, nenhum poeta medroso, nenhum poeta merdoso, nenhum eco, nenhum herdeiro, nenhum Actéon, nenhuma metamorfose, nenhum cerco, nenhuma jornada.
O mais puro nada.