Roberto Gamito
18.11.20
Se se estabelecesse uma escala de decadência, o Homem esfarrapado entraria na categoria das ruínas indevassáveis, que é como quem diz, o turista é incapaz de abarcar a totalidade de um homem esboroado pelo tempo. A vida é esse monstro de duas caras: ora tememo-la, ora idolatramo-la.
O pensamento, e a reboque dele a literatura, são perturbações, passos avessos à clareza, gestos de uma coreografia interminável em direcção ao ignoto.
Num só movimento, o pensamento arranca árvores gigantescas pela raiz, qual Orlando furioso, lançando-as para a província onde a língua se acanha. A certeza tornada dúvida novamente.
Se preferirem, o pensamento é uma máquina de gerar abismos. Daí que, seja na vida, seja na literatura, a tendência actual seja evitar os socos no estômago em detrimento das carícias no ego. Recusamos o desafio, isso trar-nos-ia problemas corpulentos, a saber: abriria rachas no ego, o qual se julga dono do conhecimento e por conseguinte capaz de decifrar cada migalha sem hesitações. Desprezamos a todo o custo essa machadada no que julgamos saber.
Inventamos desculpas, como a empatia de pacotilha, a qual é papagueada até à desagregação, evitando os objectos capazes de nos fazerem tremer.
O pensamento é um pé de cabra, só ele pode escancarar as portas que teimam em não abrir. Há demasiadas coisas a lamentar nessa viagem. É uma jornada penosa que atravessa os apeadeiros do inferno. Como é então possível que nós o celebremos?
Quanto aos outros não sei, mas a mim aborrece-me a condição de homem ingénuo. Só há duas formas de estar vivo: ou a lutar ou a fugir, ser ingénuo ou ser herói; todas as outras mais não fazem do que diversificar os cambiantes. Mais uma vez Homero: o cerco da Ilíada, ou a jornada da Odisseia.
Herói, entenda-se, é aquele que dá um salto rumo ao desconhecido.
Para o homem que envereda pelo trilho do tumulto, o lado trágico adquire uma intensidade extremamente penosa. Esse jogo coroa, inevitavelmente, o esmagamento do ego. Doravante tudo parecerá irrisório: nada me poderá tentar a não ser o amor. Acrescento: amor sem máscaras, dado que a ingenuidade, uma vez perdida, jamais será recuperada.
Pensar até que o mundo deixe cair as suas máscaras é a única escolha possível, se não quisermos sucumbir à fantasia imbecil de que somos reis e senhores do universo.