Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

08.11.23

António Costa, ex-primeiro-ministro deste rectângulo desenhado a custo, ao ser derrubado por um comunicado com meia dúzia de linhas, se por um lado deixa a suspeita de simulação de falta, ao prestar homenagem sentida a Neymar, por outro, comprova a fragilidade que os médicos lhe apontavam há muito. O governo apresentava carências vitamínicas no seu discurso, a saber: carência de vitamina A, presente no olhar cada vez mais mortiço de Costa, e de vitamina D, visível no esqueleto que ia perdendo, aos poucos, a sua verticalidade face às crises que aparecem no país como cogumelos. E tudo isto é desculpável: reparem bem nos preços dos alimentos. 

Hoje temos de pensar duas vezes antes de atirar um tomate ao comediante: este tomate vai-me fazer falta na salada. De volta para o bolso, meu útil tomatinho.
Não faltam motivos para o arremesso do tomate. Assim que soou a demissão de Costa, os humoristas foram ao rubro, e, magicamente, apareceu mais um pão na mesa — directamente do inferno que nos espera. Os médicos, professores, jornalistas que se aguentem — melhorias, para já, só para os comediantes.

Ao sair deste reality show que alguns comentadores da queda chamam democracia, António Costa terá dito: “Esta é uma etapa da vida que se encerra e que eu encerro de cabeça erguida”. Daqui para a frente ganharei a vida a fazer presenças em discotecas. Um beijinho a todos os portugueses que votaram em mim. Infelizmente, não foi suficiente para me manter na casa.

Obviamente, a minha função de bobo não é compatível com qualquer suspeição que eu me contento com os factos. Seguem-se, por conseguinte, mais piadas.

Montenegro bebeu de um trago o chá de perpétua roxa e exclamou, num tom eleitoral, aquilo que eu costumo dizer quando uma mulher se despe à minha frente: Estou à altura da exigência deste momento. Vamos ver, diz a mulher…e o país. PCP rejeita as eleições, porém está pronto; Chega, que estará em festa até às próximas, juntamente com a Iniciativa Liberal e o Bloco de Esquerda tencionam plantar urnas em escolas, querem que o país vá a votos e, na mesma tarde, enterrar o ensino português, ao passo que o Livre pisca o olho à oportunidade, um tique que já lhe valeu uma cadeira. O PAN não se pronuncia, está a reflectir sobre a relação entre contagem de carneiros e economia adormecida. 

Num país tornado pátria dos epilépticos, onde já só sabemos estar em convulsão ou a espumar raivosamente, é maravilhoso que as próximas eleições se vejam elevadas a performance onde hienas e abutres populistas dançarão à volta da urna motivada por António Costa. Num país onde medram cleptomaníacos engravatados, é apressado afirmar que Costa deixou herança política. Não obstante a incerteza política, que é como a genérica, mas com mais gráficos, fomos atirados para o cenário de sempre, como se regressámos a mais uma temporada da nossa sitcom favorita, a qual dura desde o tempo da Operação Marquês…de Sade.

Distribuam-se pulseiras electrónicas por todos os portugueses. Presos a mais uma crise, já havia poucas, comenta o Zé Povinho sem força para levantar o braço.
Faça-se o devido elogio. A crise nunca nos abandonou, mesmo em momentos de crise, e é aí que se vêem os amigos.

O Mercado, qual TJI, já fez uma react à situação. Cá vai um trecho no qual o Mercado dialoga com o português típico.

Mercado: A notícia da demissão de António Costa obrigou-me a cair 3%.
Português: Como é cair 3%? Só sei cair 100%.
Mercado: É ficar um nadinha inclinado para a direita. 

Cientificamente falando, comparam-se quedas. A de Sócrates, que se arrasta na justiça por, alegadamente, se recusar a beber cicuta e a de António Costa. Todos os corpos caem à mesma aceleração; está bem, Galileu, mas não custa nada repetir a experiência atirando, desta vez, políticos do alto da Torre de Pisa. Feita a experiência, podemos chegar à inesperada conclusão que quanto mais à esquerda estiver o político, mais depressa cai.

Nada entra em vigor, nem futuro nem nada que faça sorrir o português médio, o qual tem um sentido de humor raro, porra, não se ri com crise nenhuma, seja ela política, económica ou da habitação, tudo isto nos entristece, tudo isto é fado, à excepção do IUC, que se mantém. Óptimas notícias: ainda não é desta que transformo o meu chaço num hostel para ratos. 

Nada pesa na consciência do nosso ex-primeiro, faz sentido, o hidrogénio e o lítio são dois dos três elementos mais leves da tabela periódica, dirá com voz fininha um químico versado em política nacional após inspirar Hélio.

Para já, mantém-se tudo igual, como das outras vezes. O fado mantém inalterado; só os fadistas se revezam.

 

Demissão de António Costa


Roberto Gamito

31.01.22

A última coisa que o meu avô fez antes de morrer foi votar. Entrego-me ao prazer de ser bombardeado pelas memórias, de assistir, impotente, à despedida de um dos personagens do filme da minha vida. Dado que só existe descanso à sombra da nossa nulidade, aproveito estes minutos onde a morte se arma em editora e nos reorganiza os capítulos da nossa biografia.

A velha pequenina pede um café à Chega, sem princípio, e põe-se a discorrer sobre o mundo com voz de fadista, não quer que ninguém fique de fora da sua palestra, encavalita temas uns nos outros, em associação livre, como se estivesse numa sessão de psicanálise. Segue-se um excerto cru e sem arrebiques, isto é, acabado de pescar.
— Lá num país qualquer, não deixam os outros levarem a vacina, estão a salvar pessoas e crianças; foram buscar imagens de guerra, camiões cheios de cadáveres, e mostraram-nas como se fossem vítimas de covid-19, isto disse-me um senhor que vive em Espanha; eles dizem que é covid-19 eu digo que não é; há dias um casal foi ao Brasil e diz que é mentira, foram lá e não viram nada; a vacina é tudo menos vacina.

Aproveitando o facto de uma coisa ser tudo, excepto vacina, cá vai: a vacina é mentira, verdade, Deus, amor, tema central das nossas xaropadas, veículo do nosso ódio, estandarte das nossas vulnerabilidades, expoente máximo do nosso desentendimento, a guloseima do papalvo e do intelectual, fruto da inquietude antes silente, porta-voz das nossas entranhas, aplauso face às nossas insignificâncias, o infinito degradado pelas alíneas, o antídoto à mercê das nossas horas mais vagas, disparate absoluto, patrono-mor dos tantãs, bandeira dos iluminados, derrapagem rumo à imbecilidade, a perspectiva da perfeição adiada, canalhice fermentada, labirinto de interesses posto a nu, cume dos sábios da preguiça, altar dos apóstolos do azedume, equívoco e epifania às carambolas, baboseira inseparável da vertigem, abafadora das nossas chamas, a aventura grotesca dos aleijados, a causa dos desmiolados, caramba, como sair desta subjectividade que se fragmenta numa chuva de arpões que se abate no nosso lombo?

A vacina, os números das eleições, a pandemia e o caralho que vos foda a todos prestam uma homenagem ao romance de Luigi Pirandello: Um, Ninguém e Cem Mil.

Quanto ao Homem, há mil argumentos a favor e outros tantos a desfavor. Em todo o caso, não há forma de o pôr de pé sem artifícios.

O fanatismo político é uma forma de delírio à qual não estou sujeito. Os resultados das recentes eleições não me surpreenderam. O ódio, o ressentimento, e sobretudo a humilhação têm conquistado muitos adeptos. A lucidez sempre teve muita dificuldade em entrar nesses terrenos. A relação de um homem típico com a política é a de um adolescente com o TikTok. Põe as dores do espírito e da carteira em discurso através de um rol de frases feitas. A subjectividade alucinante, própria de uma sociedade neurótica, é a grande vencedora da noite. Povo, trabalhadores não passam de vocábulos xaroposos na boca dos políticos. Os números da terceira força política não são nada animadores. Estranhamos o primeiro; dissemos não passa daí; um erro: desconversamos acerca dos números de outras eleições, que nada tinham que ver com esta; a performance do “não passarão” não é um feitiço suficientemente forte para deter a cólera — é antes revelador do abismo entre o homem e o político.
As cisternas de cólera estão quase cheias. Não sairemos melhor disto tudo: o grito nunca foi uma escola.

Pandemia, eleições, subjectividade

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2021
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2020
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2018
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2016
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D

Sigam-me

Partilhem o blog