Roberto Gamito
04.02.21
Não é fácil superarmo-nos através da via sinuosa da escrita em tempos como este. Não que inveje o tempo de Platão, embora pudesse passar por lá se me convidassem para uma patuscada, mas, ao contrário de nós, ingénuos e papalvos, esse menino sábio e barbudo não era disputado por um oceano de solicitações, a maioria das quais inventadas, já que temos de entreter os macaquinhos no sótão com alguma coisa. Mas isso é tão-somente a pontinha do icebergue. Acrescente-se os milhões de barulhinhos e ruídos adultos que congeminam para nos esfrangalhar a cabeça, a qual nunca foi grande espingarda. Vamos dar um exemplo concreto, embora prefira os exemplos abstractos. Escrever numa esplanada de uma pastelaria em pleno século XXI com vista a erigir uma obra que nunca será devorada pelo tempo.
Estou sentado como se fosse um escriba corcunda, como se estivesse a ser sugado pelo texto, com o rabo dorido, dado que as cadeiras, excepcionalmente desconfortáveis, têm o propósito de afastar os foliões de pastelaria o mais rapidamente possível a fim de dar lugar a rabo novo. Ingressando nesse aparte, faz falta um estudo razoavelmente sério sobre as consequências de, em sítios aos quais os poetas e restante turba de criativos recorrem para ter ideias, o conforto cair de ano para ano. Cadeiras como estas não podem dar à luz Pessoas; quando muito, líderes políticos nervosos ou animais indignados.
Se o desconforto prosseguir na senda da perfeição, faltará pouco para haver cadeiras com o assento cheio de vidros partidos. Enfim, daí em diante as esplanadas só terão uso para os faquires.
Além do desconforto da cadeira, há conversas — e que chatas que elas são!, ignoro como é que os escritores do século XXI se inspiram — que nos interrompem o ritual criativo. É um engodo. Escutamos certas palavras ou frases que despertam a nossa curiosidade ao chapadão, a saber: cona, fodi até me fartar, e vai-se a ver a coisa desemboca numa patranha contada às três pancadas. Como é que alguém pode regressar ao texto após ter sido alvo de um embuste deste carácter? O lado bom, embora nefasto para o transe da criatividade, é a beleza das mulheres. Não obstante o facto de carecer de fotografias das mulheres da época de Platão, arriscar-me-ia a postular isto: as mulheres estão a ficar progressivamente mais bonitas. Assim torna-se árdua a tarefa de escrever sobre migalhas.
Suponhamos o seguinte cenário: um poeta a escrever sobre um pardal, indeciso entre o verbo cantar, entoar, buzinar e musicar e que, de supetão, é interrompido maravilhosamente pela visão de uma mulher bem arrumada de carnes. É impraticável continuar devoto ao poema. Ao pôr as coisas em perspectiva, o poeta aperceber-se-á como a sua missão é disparatada.
Há ainda o coro das buzinadelas, pessoas que conduzem como se estivessem sempre num cortejo de um casamento, sons de notificações a pingar no telemóvel como se a torneira do mundo virtual estivesse a precisar de arranjo, cadeiras a arrastar, alguns piropos tartamudeados, não vá a mulher ouvir e ripostar com ferocidade, o som da música do estabelecimento, amiúde mais irritante que inspiradora, crianças à marrada com as cadeiras, um jovem com uma coluna na mesa ao lado a promover os seus gostos, velhas indagadoras, as quais banem do coração dos incautos qualquer vontade de viver. Coisas que obrigam o criativo a ponderar o suicídio sem nunca alcançar a poesia.
Visto deste prisma, Platão já não nos parece tão genial. Sem distrações também eu.
(9-7-2020)