Roberto Gamito
14.11.21
Já não me recordo como cheguei aqui. Órfão da realidade, qual natureza morta que em virtude dos sucessivos restauros se metamorfoseou em retrato, entrei na universidade dos ponteiros, entregando-me ao curso dos acontecimentos disposto a enfrentar com estoicismo as consequências dos tiquetaques.
Principiava um sufocante interrogatório. Mas quem poderia respirar aqui? Quantas mutações até alcançar o meu verdadeiro nome? É condenável transformar um cenário de guerra num salão de bailes? Será que desejo, como Alexandre, o Grande, o mundo inteiro? “E nem um palmo a menos do que o mundo.”
Desde então esta é a minha morada.
Com é óbvio, tudo isto deve ser interpretado à vossa maneira.
A vossa cabeça mobilará as lacunas do texto fazendo de mim um vilão ou um herói, estropiará as metáforas, esvaziará a altura, espezinhará os múltiplos sentidos, amesquinhará os pormenores em notas de rodapé. Viver dependente das interpretações hostis não é fácil; deixamo-nos levar pelos juízos flutuantes e saltitantes e quando damos conta estamos a condenar à guilhotina santos com obra feita.
Pois é isto: a estupidez não conhece obstáculo, eis a atleta-mor, melhor dizendo, a vontade de esfrangalhar o outro supera tudo. A lacuna no teu discurso será a tua vala — cogita o censor. Desde então tenho pesado as minhas palavras como quem trafica a mais valiosa das drogas.
Após umas semanas a reflectir numa travessa de marisco, agarrado a uma sapateira bolorenta, ensaiando o tango do tédio, consolidei a minha posição: a fúria de viver regressava vagarosamente às minhas veias. A cólera transfigurou-me num animal albino e quilométrico. Alea jacta est.
Entrementes, vasculhava, não de cócoras mas de pé, o mundo à procura de fragmentos de luz, pequenos nacos carcomidos de um deus antigo, um rudimento de um paraíso vetusto. O perfume da rosa fora sepultado na folha. Enformado desleixadamente em poema. Desafortunadamente, incapaz de me transportar pelo leito do delírio até ao passado, a arte viu-se submetida à métrica do literal. O verso tornado sarcófago do perfume. Sem a rota do perfume, vemo-nos agrilhoados ao presente.
Quando as exigências da carne afrouxam, quando o desejo aligeira a necessidade de alvo específico e se espraia como o Outono nas folhas verdes, abandona os ídolos, torna-se iconoclasta e regressa às leis da fome primeva. Não há uma única frase nas nossas conversas que não tenha já sido proferida centenas de vezes. Gaguejamos de nariz empinado citações de autores caídos no esquecimento. Sem poesia, a palavra orbita segundo a trajectória do eco.
Um átomo de novidade na ponta da língua: eis o labor do poeta. Face à bancarrota do coração, afigura-se-me uma guerra sem feridos.
Sem vida, fechado num sem-número de cárceres, foi da imaginação que o Homem gerou a sua autobiografia luxuriante. Nem Deus nos pode expulsar do paraíso da imaginação.