Roberto Gamito
28.06.22
A cólera agarrou o microfone e, com os olhos esbugalhados, monopolizou o sangue. Eis mais uma peça no teatro da testosterona.
Nós, que desperdiçamos a energia e o tempo à cata de migalhas enquanto viramos costas ao bolo, saímos dos dias como Adão e Eva do Paraíso. Adão, Eva, Satã e Ulisses entram num bar e comentam: "O regresso é impossível".
O poeta é um trabalhador braçal, precisa de conseguir imaginar David encasulado no interior do mármore. Mas antes disso necessita que a folha se assemelhe a uma rocha. Entre uma coisa e outra é vital afastar o entulho para que o homem fique a sós com o impossível.
As frases motivacionais têm sido construídas com as sobras do cadáver de deus e com o entulho do templo do deus desconhecido. Empatia? Coitados, com que então em busca de consolo na arte? Activistas amestrados pelos holofotes esgotam-se em tentames de trajectórias esclarecidas, tentam insuflar a mão dos descendentes dos poetas malditos de vocábulos sem chama. O Eu canta o inferno!
Procuram a paz na Capela Sistina ignorando o facto que Michelangelo descansava a cabeça acompanhado de enforcados e cabeças separadas do corpo. Então, onde é que está o problema? Não nos podemos pacificar onde o outro foi espremido? "Estás sempre sozinho como um carrasco", diz Rafael a Miguel Ângelo no filme Sin quando este último o acusa de não ter ideias próprias.
"Por que diabos devo amar-te? Florença, o que fizeste a quem te amava? Tu que és o cemitério do meu amor, dos meus sonhos, da minha inspiração?" Século XXI, o que farás a quem te amou? Quem será o próximo Actéon?
Empatia? Michelangelo responde: "Estou farto de viver em Roma. A cada passo que dou, há um padre, um peregrino ou uma prostituta." Numa frase lapidar, sintetizou Séneca e Rilke no tocante a conselhos a jovens poetas: "Nunca desço dos andaimes."