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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

16.05.24

Como se foge a isto? Quando escrevo estas linhas, que poderiam ser outras, caso as musas cooperassem, reparem, engendrei uma miríade de engodos com o intuito de as atrair e, até ver, nada surtiu efeito, não peço muito, contentar-me-ia com a da comédia, a desengonçada e por um triz exumada Talia, ou, estando ela muito ocupada a digerir o mundo numa cama de interpretações e notas de rodapé, a cabeça de Medusa servir-me-ia igualmente, parado é que não posso estar. Aproximo-me a contragosto da casa dos quarenta sem coreografia digna de ser fotografada, construindo, ruga a ruga, rusga após rusga, o rosto derradeiro. Pondo a primavera para trás das costas, enxotando as andorinhas com uma fanfarra de bufas como é próprio destas idades, fazendo adeus às cores de outros tempos ao som de ossos tagarelas — corpo enquanto casa assombrada onde tudo é instrumento macabro, cada vez mais vizinho da morte — ó vizinha acaso não tem uma coroa-de-flores que me possa dispensar?, como se as palavras fossem tombando sem alarde do discurso como pétalas afónicas, no chão lâminas rombas, como se me rapinassem com dedinhos ágeis de contrabandista o passado e perfume e me abandonassem com uma mão atrás e outra a frente na grande catedral do Deus desconhecido, no interior da qual, o homem enlouquece sem ajuda de terceiros, tipo câmara anecóica, o sangue juntamente com a chusma de barulhinhos de início incógnitos ganham tamanho e biografia a ponto de alcançar a corpulência de um predador jurássico, dos famintos e logo a abarrotar de dentes, e receber, à minha frente, bem empratado, o inferno ao meu gosto — sem que o tivesse encomendado. Dono, ou melhor, sócio minoritário, de uma verticalidade precária, de um esqueleto que vê nas dores a oportunidade de receber mais uma leva de socalcos, exilado na sua própria imagem, descortina favas dia sim, dia não em cada passado dado, narciso em fim de carreira, rei capaz de entediar o mais enérgico dos regicidas, orador motivacional de fantasmas, embora sem efeitos por aí além, depenado por qualquer mão, virtuosa ou calejada na marotice, vencedor no papel e derrotado na prática e mais um rol de lugares-comuns incapaz de detonar esse guarda-roupa de peles secas guardadas no fundo do baú da existência. Podem vir a fazer falta, pensa, a época alta dos bailes de máscaras está longe de acabar.

 

Ao olhar para o espelho, como é comum nos filmes, dá-se conta que, ao desnovelar o reflexo, ingressa numa inabarcável galeria de cadáveres, aqueles que poderia ter sido e outros que, querendo ou não querendo, acabou por ser, e ainda outros que, carambolando entre o passado e o futuro, foram traduzidos pela memória, esta dotada da insânia de enterrar o rosto inicial no esquecimento e devolver-nos a cabeça de um animal inclassificável. A confusão é tanta que ignora se matou Laio ou se vive debaixo das suas saias. O nosso homem, o qual se havia desembaraçado do nome para que pudesse entrar e sair de todas as histórias sem ser notado, ele que, ao contrário do poeta, não o habitou, quando muito morou lá por favor, fora inquietado por uma dúvida. Como se foge a isto sem enlouquecer? Serei eu, também, obra do acaso. Não suporta não ser senhor de si próprio. Medrou como humano enquanto os lábios de uma Beatriz escaqueirada pelo tesão não se esfumaram da sua cabeça. Nada havia a fazer. Punha-se a vampirizar a sua magra biografia, a enxertá-la com episódios alheios, ele que fora, que epifania azeda!, estupidificado por mil servidões. O jovem, apodemo-lo assim para efeitos de ódio, veio directamente da cona da mãe para o insultar. Levou com enxovalho no lombo e placenta na careca. Sabe lá ele o fim que o espera, pensou, e prossegui com seu monólogo interior. 

 

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Roberto Gamito

07.01.24

A paixão é uma experiência cinética — um movimento que celebra um sem-número de apeadeiros por onde o calor passa a todo o vapor. Tanta coisa ficou por perguntar e outra tanta por responder; principiamos a abrandar, a pôr o mapa de lado, atiramos os santos pelas janelas do carro e enviamos piretes ao destino. Ao espaço e ao tempo deixamos as peles secas. O final está ali, à espreita, todo fome e mandíbulas. 

O artista pequenito começa a escalar, como quem não quer a coisa, pelo tornozelo da sua musa, vemo-lo a congeminar patifarias eufónicas, quer dizer, poemas feitos de fôlego de vidas desperdiçadas, vemo-lo, presumivelmente, destituído das máscaras do dia-a-dia, catapultamo-lo para o palco improvisado pelo olhar, o qual desceu pé ante pé pelo declive que liga o marasmo do quotidiano ao decote perfumado. Suspirou com vagar, parafraseando uma actriz de cinema. Dias ou meses mais tarde, desencarcerará desse instante palavras como beleza, bebedouro, energia, indizível. Ao rés desse episódio que não vingou no mundo, regressamos ao zero absoluto. Depois, ziguezagueamos até casa atirando o norte para trás das costas. 

Não me difames assim tão facilmente. Quando me vim, não sabia o que pensar do orgasmo. À primeira vista, era um território despovoado de palavras. À medida que a temperatura arrefecia, as palavras reclamaram o espaço quais ervas daninhas. Doravante parodiarão a Idade de Ouro. 

O poema sobre o orgasmo, lamentava-se o poeta, ninguém tinha interesse em ouvi-lo. No entanto, para escutar o orgasmo, não faltavam ouvintes. É muito sensível, não é? Ao humanizá-lo, ao ver nele, no orgasmo, prateleiras apinhadas de legendas, sufocamo-lo. Mas isso não é grave. O pior é não sabermos o que fazer com o tempo que nos resta. 

Durante muitos anos tinha sempre um livro onde me refugiar. Ignoro se sou eu que cresci, se são os livros que minguaram. Uma coisa é certa, durmo com o rabo de fora — e isso não é bom. Não é bom para mim, que me constipo, nem para a literatura, que não faz puto.

Tencionava replicar esse desconforto noutras coordenadas. Não tínhamos dinheiro, nem tínhamos fome. Víamo-nos uns aos outros como pipas resignadas onde a frustração fermentava longe dos olhares. Um dos meus maiores arrependimentos, diz o velho, é ter dito não ao Diabo; serviu-me de muito. 

Alguns fados, uma canção desasada e um homem depenado às voltas do microfone como quem procura o nome da musa debaixo da língua. 

 

Desconforto noutras coordenadas


Roberto Gamito

30.09.23

O tom de voz usado pelo grupo, do qual sou apenas espectador, recorda-me da minha condição de forasteiro. O meu, inspirado num abismo, não vai nessas cantigas. Nisto dou conta que só logro conversar com desesperados. Regressei à minha vida ontem, e a interrogação, que me ocupou a cabeça e de seguida a mão, incidiu sobre os obstáculos, os verdadeiros e os fictícios. É como se um eu que podíamos ter sido tivesse saído a correr da nossa vida actual rumo ao futuro e tivesse semeado generosamente obstáculos pela nossa biografia. À experiência cabe a ingrata tarefa (ingrata porque amiúde votada ao fracasso) de separar o trigo do joio no concernente aos obstáculos.

Rompo com o vaivém monótono da vidinha, pêndulo de duas perninhas capaz de adormecer sereias, e dirijo-me com ganas de povoar a cabeça com luz e perfumes. Um jardim, uns patos, flores para as quais não tenho nome. Cogito: o melhor é sair daqui o quanto antes, seria uma tristeza inclinar-me para a poesia. A língua, que muda a própria natureza, é um jardineiro ébrio. Os dias acotovelam-se dentro da cabeça e deles ignoramos quase tudo. A concentração já não abre caminho através da floresta do silêncio, nem obriga a vir à tona certos nomes. É o desfazer-se da verticalidade imaginada — se preferirem, sonhada — na juventude. Os dias foram surgindo sem que lhe farejássemos as intenções, uns atrás dos outros, subtis e liliputianos, e arrumaram com a altura do gigante. Não demos conta da cilada. 

Possível epitáfio: vou descer fingindo que acredito. Adiante. Faço o possível por não engolir o labirinto, confidenciou-me o Minotauro, nas entrelinhas da minha respiração. Apagado o fogo, desenhamos nas cinzas um nome que outrora confundimos com norte. 

O olhar frio é ineficaz: as obsessões apodrecem a caminho da mão esquerda. O cérebro, o citador de ruídos, principiou a encher-se de mentiras; crê ver no estratagema um alívio. Harmonizei os falhanços no silêncio, pelo que não esperem nenhum canto de cisne. Sou seu súbdito, em troca dotou-me de uma outra espécie de fome. A certa altura está-se cheio de ser-se olhado como animal morto — e depois?

Não fosse ter inventado um falcão a inspeccionar a minha pequenez lá do alto, e teria sido uma manhã como as outras. Este apeadeiro foi incendiado e segui caminho. Voltei-me para os versos de poemas antigos e chorei diluvianamente. O corvo de Noé ter-se-ia banqueteado com esta selva de cadáveres. Em todo o caso, desejo saúde e longa vida aos meus fantasmas, e eis que a luta recomeça. Nós não estamos condenados a abreviarmos a vida num grito. 

 

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Roberto Gamito

12.02.23

Regresso a mim inspirado no desenlace do mito do rei Erisícton. Ocupar espaços vazios, todo o jogo é isso, escreveu Gonçalo M. Tavares, até a gula, acrescento meu. 

O jogo começa assim: a ave ensaia o voo onde o suicida perdeu o nome; a minha cabeça feita mármore já enceleirou um sem-número de profundidades; o corpo converte-se em labirinto
percorrido ora pelo amor, ora pela cólera. Queremos continuar a avançar neste xadrez onde as casas foram remodeladas em cadafalso; qual das peças escapará para contar a história? 

A curiosidade cessa com a primeira cornada do Minotauro. A fome cataloga bichos e homens. Ensaia-se a verticalidade onde calha.

Aquilo que a memória rumina, o olfacto ressuscita — que perturbador! Demónios mudam de dono, saltitando de cabeça em cabeça: eis o legado — que as entrelinhas encontrem novos olhos. 

Um homem que dá desgostos aos seus como empresas dão lucros. Fruto larapiado de uma árvore jamais imaginada. 

Sempre a meio do trajecto 
entre a queda e o regresso
nenhuma palavra, tudo é silêncio.

A guilhotina não interrompe o olhar do bobo. Onde tinhas a cabeça? Descansa aqui antes de continuares a tua odisseia de decapitado. 

Cada palavra engolida pelo rei glutão gera um hieróglifo. Em faltando tempo, os homens preencherão as lacunas com deixas divinas — quão prodigioso é o desespero humano! 

Cada frase engolida pelo tempo será uma semente de futuro adiado. 

Silêncio, a arca
antidiluviana.

 

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Roberto Gamito

31.12.22

Como toda a gente, também fiz a minha viagem, idolatrei miragens e falsos deuses, empenhei-me em algumas metamorfoses e desdenhei outras. Andei por aí à procura do meu nome em cumes e debaixo de saias, vagabundeei sem norte nos socalcos dessas carnes cujo nome esqueci —calma com a fusca, o poeta é um fingidor.

Deixei o amor fugir demasiadas vezes, dando a ideia que não quero nada com ele — o que não podia estar mais longe da verdade. Todos os silêncios são altares em seu nome. O cínico não passa de um romântico com uma biografia arruinada.

Olhando para trás, uma vez que é altura de balanços, parte desta odisseia escanzelada foi andar em círculos. Se não fico bem na fotografia a experiência não fica melhor.

A maturidade é isso — darmo-nos conta que, afinal, não andámos grande coisa. Seja no capítulo do conhecimento, logo eu que não recuo diante de nenhum livro — e para quê? Grande parte da vida adulta passei-a a ricochetear entre fracassos, mágoas, traições, desilusões e mal-entendidos. Desses tempos sobrou o autorretrato: um pardal às cabeçadas numa casa de espelhos. De migalha a dragão graças ao ego. Fui apadrinhado por várias quedas, a minha cabeça estava sempre noutro lado. Sempre equiparei o sofrimento a uma vida nova em botão. Não há meio de desabrochar na merda deste... Cansei-me de desertos como Borges se cansou de labirintos e tigres. Só quero saborear os frutos da minha solidão. Libertamo-nos dos grilhões de um paraíso artificial e ingressamos noutro. O Homem é o mesmo paspalho de sempre — não tenham ilusões de melhorias.

Passei os dias agarrado à folha, ora a escrever, ora a ler, a ofuscar-me com vultos cheios de lâminas, a embriagar-me com o canto e o silêncio das sereias. Foram anos desvairados, durante os quais acordava com os corvos de Odin a segredar-me aos ouvidos. Memória e Pensamento.

Para que eu fique engaiolado para sempre nestas folhas, aprisionado em linhas finais jamais mansas, urge descortinar o limite da mão. Não tenho tempo para povoar as entrelinhas com justificações, outros que cumpram esses Carnavais. Não tenho tempo nem estômago para as vossas falinhas mansas. Preciso de digerir o meu inferno, e é só. Bom ano.

 

mais um ano


Roberto Gamito

04.12.22

Quero cultivar-me. E então, quem te impede, questiona a mesma personagem com outra voz. Nada restou, todavia, da sua poesia.
O bando de estorninhos lesa-nos o intelecto com o seu circo de formas. Reparem como é belo o medo e o falcão. K. naturalmente faz parte do cânone eleito. O olhar caído na folha tem por fito iluminar um pouco mais o corpo feito lacunas de Deus, o qual sobreviveu graças às citações enviesadas das aves negras. Em não faltando coragem, será o estudo introdutório dedicado às fontes das cicatrizes e, em ganhando balanço, havemos de desmentir Ovídio. Ponham lá um sorriso nessa cara desfeita, arranjem lá espaço para mais uma leva de feridas.
Fartinho dessa prosa atrelada ao lugar e ao tempo e, aproveitando que pusemos a cabeça no cepo, da altura a reboque da fama. Desta feita, farei aquilo que acabei de condenar.
Aqui estou, vindo do bafo do Deus das Moscas. Cacemos então grilos com mimos de caça, façamos do empecilho ratoeira.
Hermes, do outro lado da porta, deus dos gonzos. Acaso deliras?
Ali onde as máscaras foram penduradas jaz um sem-número de artes. Já aqui andas? Não escapaste há pouco do cadafalso? Não me envergonho de ser esta triste figura, sem Rocinante mas com pança tenho vencido os meus ágeis moinhos.
Um dia essas palavras por-me-ão a correr. A minutos do fim todos os versos soarão a profecia. Entretanto não confundas putas com Hécate. Estou arruinado: fui visto a escrever uma frase genial.
Abreviadamente, podes dizer, quanto ao estilo da canção que te chega aos ouvidos, que é uma perífrase para 'amo-te'. Hei-de fermentar as mais magras migalhas, até lá não expulsarei as mandíbulas da escrita.
Em nome de costumes mais antigos, comunicar-vos-ei que 'escapadela' era o nome dado a uma dança cómica de natureza obscena. Daqui até ao sexo vai um mal-entendido, diria um pau friorento.
Há mais de mil anos que o Helleborus deixou de fazer efeito.
Onde antes havia um mero buraco há hoje um báratro, um poço onde eram atirados os criminosos em Atenas. Para evitar a hiperinterpretação do termo, digamos que nunca fui a Atenas e troquei os criminosos por fantasmas. Estás com azia, não é?
As mulheres interditam o reino do baixo ventre
isto ouvi eu quando fui à Antiga Grécia
altares ontem quentes hoje abandonados.
A fruta que amadureceu antes de o Homem lhe dar nome, pesada pela mão desonesta do poeta, lida por quem confunde gotas com oceanos.
Ideias prensadas num instante. Examinarei isso com os meus melhores olhos, prometo, mentimos nós descaradamente.
Foda, competente vocábulo; serve-te do meu corpo e da minha língua desfivelada. Ó tolo, sussurra a deusa, anda cá, livra-te dessa cegueira. Seja amor ou mais uma maquinação de Empusa, a partir daí tudo o que vier é ganho.
Buscando a mulher, aqui chegamos. A solidão já nos permite outros folguedos. Nota-se uma falta de vocabulário após o império do calor. Empusa, rainha da metamorfose, alimenta-se de carne de homem.
Em todo o caso, não teríamos escapado inteiros até aqui. Não tiro uma vírgula ao meu desnorte.
 

roberto gamito


Roberto Gamito

27.11.22

O inferno concretiza-se por meio das obras que lhe caem dos dedos, amiúde já com cabeças capazes de fundar novas escolas de desespero. A temporada no Círculo dos Gigantes protege-o de um envenenamento excessivo, graças aos gumes, persiste unido aos demónios; as asas derretidas e a queda, outro nome para metamorfose.
 
A cólera é dotada de luz própria. Apesar de encarregada de canalizar os animais para a arca das ideias, ela é igualmente o que fica de fora, as sobras clandestinas com a mania de grandeza, o que torna o imensurável em ilha, que é como quem diz, o dilúvio posto em obra de sangue. Do mal o menos.
 
Quando a poesia é encostada contra à parede, esmagada pela pressão de todas as eras, as bolorentas e as que hão-de vir, o poeta não tem outra escapatória senão torna-se um cachalote albino. Fazer gato-sapato da profundidade, florescer onde a luz se extingue não está altura do peixe miúdo.
 
Tentam engaiolá-lo numa definição, todavia ele extravasa do molde da descrição. Metal fundente e zero absoluto em simultâneo.
 
Ó bobo canoro, não te limitaste a gerar confusões, empecilhos e fogueiras do bem. O homem à mercê do desconhecido, o mesmo bicho assustado do início.
 
O homem não viu nada que o fizesse esquecer a fome. Ainda assim, engordou. A solidão engordada pelos fracassos amorosos.
Vingança? Qual quê? Um menu frio de lamber os dedos, eis as palavras do Diabo diante do cadáver de Deus.
 
Uma única linha de um gigante serve como alimento para um enxame de artistas. As postas do legado fervilham de fome e mediocridade alheias. O desmantelamento pacífico do cachalote albino por formigas oportunistas é apenas uma paródia ao oitavo círculo de Dante. E solução? Calma, primeiro tenho de engolir o cosmos, sussurra Dioniso aos ouvidos da morte. Mesclem-se então as máscaras, as vagas de heterónimos, eis chegada a altura de fundir as infinitas possibilidades num único rosto.
 

Círculo dos Gigantes, primeiro rascunho


Roberto Gamito

13.11.22

Não resisti e dei-lhe um murro nas trombas. A culpa foi dele, começou a pensar antes de cada frase. O silêncio enoja-me. Ele que venha agora dizer-me que gosta de poesia e reforço-lhe a dose. A paciência tem limites.
Dei voltas ao miolo, não vi outra solução senão pegar na cabeça dele e ensaiar um xilofone no balcão da taberna. Não correu como esperava, a música não é ofício de uma tarde, é para se ir fazendo.
Poucas pessoas sabem o que é poesia, confundem-na com uma chave que destranca pernas exigentes, e até que não desgosto do engano. É altura de colonizar o espaço mental com tempestades, lâminas e arrancar ao perfume os nomes conducentes aos passos em falso. Metade do trabalho está feito, o resto é convosco. Fiz o mais difícil, concretizar sem medos uma frase sem nexo.
Se apanhou e calou, a culpa é dele. Já há meses que anunciava a leva de carinhos ásperos. Teve mais que tempo para se preparar. A melhor defesa é...apanhou logo, nem o deixei acabar. Tanta forma de se defender e o gajo recorre a uma frase rançosa? Apanhou foi poucas. Afastar-me dele por causa disso? Que estupidez, nunca estivemos tão amigos. A coça afinou-o por dentro, até dá gosto, parece um relógio suíço. Juro-vos pela saúde do meu Piruças que, no que depender de mim, Deus me dê forças e as finanças não mas retirem, hei-de manter esta amizade dê por onde der.

*

à parte os galos amealhados em petiz, permanecia cabeça dura. uma cabecinha esculpida pela queda que até metia dó. o coração, tão confiável como um economista a mandar palpites na televisão, de queixo caído a cada esquina, confundindo as didascálias do quotidiano com a voz das musas, a braços com o judo poético, usava o força do mundo contra ele. a força poderia parecer, aos olhos dos ciclopes contemporâneos, insuportavelmente tóxica.
X., cercado pelo destino qual chouriço encurralado por uma família de alentejanos, pensei eu na pausa de outro conto, tipo personagem saída das goelas de Xerazade. não confiem nessas lengalengas: não há forma de adiar a lâmina.
temos de acabar, carpe a mulher, espera, riposta o macho, se aguentaste dez anos de uma relação de merda também aguentas mais dez minutos, agora ouves o que calei durante este tempo todo.
amor...
querido, ou melhor, ex-querido, estraguei a juventude a aturar-te, só de acordar ao teu lado esfrangalhava-me os nervos durante o resto do dia, metes-me nojo e está tudo bem. casei com um homem que mais parece um caniche a quem lhe foi ensinado a andar na vertical num circo de vão de escada. no campeonato dos medíocres, és um campeão, palmas para ti. o nosso amor foi um flop. afadigavas-te em cama alheia, não é, ornitólogo de pássaras implumes? e o pior é que nem foder sabes. e agora: o que digo às minhas amigas? como explicar esta relação de dez anos?
quero acabar.
isso não é assim, minha amiga, retruca o homem, tens de dar dois meses à casa.

*
 
O livro: abro-o conforme a sede, sepulto-me nele e eis-me regressado das águas com outro nome com a cabeça de João Baptista às costas. A memória é uma estante inacessível.
Ando por aí
amparado em ficções
a fazer dos cornos do Diabo as andas
com que simulo a intrepidez em cima das áscuas.
Sou o cornaca do meu inferno.
O marcador dos livros é a caneta. O apeadeiro da leitura transformado em semente de montanha. Pedi-Lhe a sombra. A interpretação é uma farsa, todas as frases são ruas de sentido único. O que me falta para ser igual aos outros mortos? A sombra foi-me concedida. A verdade tem um certo gosto em encurralar-nos. Estamos de novo nas vésperas de uma nova página, nós que, após o êxodo das mãos esquerdas rumo ao Hades, ficámos maravilhosamente indefesos contra o ignoto. Com efeito, escrever e ser descrente é a mesma coisa.

Cornaca do meu inferno, Roberto Gamito

 
 


Roberto Gamito

13.11.22

Filho de dois homens imaginários, condição que o livrava dos vieses dos artistas contemporâneos, perdia as tardes a esgaravatar no mármore à procura do rosto do homem. Adulterando a frase de Borges, bradava a quem quisesse ouvir: o ser humano vive da ficção que todos os dias acontece algo diferente.

Numa ocasião forense atípica durante a qual vacilava no cadáver de um anjo caído, um desumano exercício de restauração, gania afinado: hei-de ressuscitar o mal nem que seja a última coisa que faça.
 
De um lado Fernando Pessoa e a sua tanga: "eu sou uma antologia", do outro, o anónimo: "em calhando, serei uma nota de rodapé".
 
Um dia chegaremos à conclusão que a arte não é senão um complexo, tortuoso e labiríntico manual de tortura com vista a esfrangalhar o projecto das inúmeras levas de Narcisos.
 
Também não é preciso abrir as asas, a ficção de gigantismo não afasta a fome fulminante do predador alado. O tom deste século é o de uma velha solteirona que deixou a vida escapar-se-lhe entre os dedos.
 
Ser anónimo, actualmente, é experimentar a coreografia do neutrino: não interagir com nada nem com ninguém. Eis a pureza que ninguém esperava.
 
Agrilhoado a uma cona esfomeada, qual Prometeu que ignorava tudo sobre o fogo. Ao longe, as águias de Zeus parecem corvos e abutres. Mas alegrem-se, tenho uma boa notícia para vos dar: vi um homem vergado sob o peso do seu conhecimento. Que aldrabão!
 
Salvem as cartolinas e o mundo que se foda. Assim se esgotam as alternativas. Coragem! Confiem nos vossos instintos, sejam vocês mesmos, amanhã o trend poderá ser outro.
 
Afectivamente falando, considero-me canibal. Estão cá dentro.
 
O importante não é achar o amor, é não parar de o procurar em todas as casas.
 
A vida adulta é o suicídio colectivo das perguntas. É abanar a cabeça para evitar problemas. É cada vez mais difícil fazer destrinça entre um resignado e um doente de Parkinson.
 
O aplauso serve tão-somente para ocultar o barulho do disparo. Lindo, o artista despediu-se com um sorriso nos lábios.
 
Curei-me da depressão, já não vou ao fundo. Sou o homem de cortiça. O poder terapêutico da parvoíce.
 
O humorista é pródigo em três coisas: disparates, choradinhos e regras dos três.
 
A minha mediocridade nunca cessa de me espantar: adapta-se a tudo o que faço. Isso há-de ter algum valor.
 
Nova profissão: porteiro de redes sociais. Alguém cuja incumbência é controlar as saídas e as entradas deste teatro de doidos.
 
Se Kafka tivesse nascido em Portugal, teria sido apenas um tipo com orelhas grandes. E isso só revela a escassez actual de capachos monumentais.
 
O artista sobe a palco e berra: não tenho nada interessante para vos contar. Bem, vamos à minha vida. Para o que havíamos de estar guardados.
Na sociedade do espectáculo vertiginoso, não confundir com a do Guy Debord, a arte não é uma arma, é uma faca de plástico de cor garrida.
 
Agradeço ao twitter por ter acabado com o mito do artista inspirado. Parece que ouço o meu avô, não tens nada nos cornos.
 
Mais uma errata. Porra, Fernando Pessoa, não acertas uma.
Só a arte é inútil.
 
Tenho três cães e mil fantasmas, sonhos esmagados e coração desfeito e pouca paciência para rodriguinhos. Há três coisas infinitas: o universo, a estupidez humana e as versões desta frase de Einstein.
 
Isto é tudo muito bonito, empatia, privilégio e os demais vocábulos de papagaio mas o que é certo é que basta uma noite mal dormida para o diplomata pôr a sua carreira em risco. E quem diz carreira diz pescoço.
 
Está bem, Confúcio, é melhor acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão, mas porra, um gajo desfeito tem de se entreter com alguma coisa.
 
Oxímoro: modesta opinião. Se é opinião não pode ser modesta. Estamos conversados.
 
Não vou na cantiga dos artistas genuínos, só acredito quando vejo um homem esmagado pela vida. O resto é performance. Não me bombardeiem as vistas com teatros medíocres.
 
Se o humor desaparecer, a gigante começará a temer o anão.
 
Adie tudo, a menos que seja uma discussão. Evite ofuscar os medíocres, preferencialmente se não estiver disposto a levar no focinho.
 
Será que é mesmo necessário? Eis a minha resposta universal às ordens que me lançam.
 
Isto está uma merda, dir-me-ão. Já estava assim quando eu cheguei, eis uma das poucas frases que nunca poderá ser dita por Deus.
 

Império das Aspas


Roberto Gamito

12.11.22

A narrativa tem molde de sarcófago mutante. A sede do outro propõe-nos negociação, algumas soluções finais, a saber: um directo para as redes sociais com a morte, em que cadáver e Ceifeira sorriem para a câmara. Mercadejemos, meus irmãos ontem verticais, o inferno inesgotável, à revelia do Canhoto. Recuemos uns milénios, decapitemo-lo, ao Diabo, mas primeiro urge lavar as mãos, seria uma pena contaminar a cabeça do chifrudo com as nossas noções de paz. De seguida, espero que estejam a acompanhar a receita, diz o bárbaro-poeta cuja mão canora, feita machado, é um poema de Kaváfis, pousem o cérebro nas placas de argila, no papiro, no pergaminho, no papel ou no ecrã, é à vontade do freguês.
 
A interpretação é uma farsa, uma ficção suprema, mas é tudo o que temos.
As coisas como são
mudam na viola azul, traduz Wallace Stevens.
 
Esquecendo os comediógrafos afogados pelos alvos das piadas, esquecendo o rígido Platão, e o mais maleável Aristóteles, descartando o nado-morto que foi a Comédia Nova de Menandro, sublinhando a bufonaria dos banquetes, Aristófanes que soube dançar ao rés do cadafalso, Demócrito, o sábio, cujo riso desorientava os medíocres, ou respeitando o apodo da altura, o hilário de Abdera, que apoucava tudo e Heráclito, o chorão de Éfeso, que dramatizava tudo, qual activista à frente do seu tempo, sobra-nos a relação tensa entre o riso e a lucidez. Eis-nos chegados ao núcleo.
 
O comediante encontra na folha a sua harpa, mesmo no arengar dos seus engodos. A hipocrisia colectiva não é senão uma sinfonia de iscos. A arte, que há dias tornava o fardo suportável, escapou-se-nos entre os dedos, doridos de tantos afagos. Acariciar o ego alheio com vista a saltinhos na hierarquia ficcionada tem o seu preço. O coração rufa como um tambor nas mãos do amador. O discurso apinhado de alíneas, o paleio pós-moderno, armou uma cilada às crianças aperaltadas de adulto. A má-fé, erva daninha que armadilha o diálogo antes da asfixia. Agrimensor ébrio do seu próprio eu, eis o retrato do homem contemporâneo.
 
Enquanto arranho o assunto, recordo-me de Luciano de Samósata, que ressuscitou o riso triunfante vindo dos deuses, o riso enquanto dialecto do caos. A liberdade tornada som.
 
Platão nunca perdoou Homero o riso inextinguível dos Deuses. Por conseguinte, vingou-se em levas de rabugice da poesia e da comédia. Não me espantaria nada se se descobrisse que há dedinho do filósofo sisudo no desaparecimento da segunda parte da poética de Aristóteles. O sorriso é neto de Platão. Uma das suas maiores conquistas.
 
Durante uma das muitas incursões às profundezas do eu, esse grande império povoado de fantasmas, esse abismo sem pés nem cabeça, recordei-me do riso selvagem de Luciano, de quem se disse tudo, excepto coisas boas. Luciano, o humorista supremo, que troçava de tudo, superiores e inferiores, era bordoada de três em pipa que era uma maravilha, e nem os deuses escapavam. Para alguns, Luciano era filho do diabo, de tantas vezes que entrou e saiu do inferno. Aquele riso não podia ser humano.
 
Romantizam-se os colhões, argumentará um discípulo de Menandro. Face ao monstro cujos barrocos cacarejos se destinam a domesticar o riso, a reduzi-lo a mais um traço de um rosto maquinal, necessitamos que o dinamite faça das suas na arte do parasitismo, é a única solução. Como disse o outro, filosofar com o martelo. Sei que custa engolir, mas a confusão nunca será resolvida com um refrão, ó fantoches do eco.
 

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