Roberto Gamito
19.08.22
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19.08.22
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Roberto Gamito
28.12.20
Homero pode traduzir-se como “o que não vê”. Não me recordo de melhor apodo para o Homem contemporâneo. As suas duas epopeias — e que jeito nos daria encontrar a sua Comédia perdida — dão-nos o fiel retrato do Homem e suas flutuações. O Homem é o que brota do casamento entre a Ilíada e a Odisseia. Os mais estudiosos diriam, e provavelmente com razão, que a Eneida de Virgílio cumpre esse sonho de casar os duas obras magistrais de Homero, saltando daí que, grosso modo, Eneias resulta de um cruzamento entre Aquiles e Ulisses. No meu modesto parecer, é em Ovídio que melhor percebemos essa cascata de possibilidades — filhos, peles, se preferirem — que o Homem pode adquirir. Sucintamente, Metamorfoses é o inventário cantado do Homem. Ao abri-lo, damos de caras com todas as espécies de Homens. Todavia não necessitamos desse oceano de detalhes e animais facultados pela metamorfose.
Ilíada e Odisseia fazem parte de um grupo de livros muito selecto que moldou a cabeça dos ocidentais, entre os quais se encontram a Bíblia, Metamorfoses de Ovídio, Da Natureza das Coisas de Lucrécio e provavelmente a Divina Comédia de Dante.
Ilíada e Odisseia, com sorte ou com engenho, legaram-nos as duas únicas formas de contar uma história: o Cerco e a Jornada. Ao longo dos últimos tempos tenho gatafunhado muitas linhas acerca do assunto, por conseguinte não irei por aí desta vez.
Não é despiciendo assinalar que a primeira palavra da literatura ocidental, presente no primeiro verso da Ilíada, é cólera (em grego, ménin).
Concentremo-nos nas personagens principais de cada epopeia: Aquiles e Ulisses, respectivamente. Aquiles é uma máquina de guerra, é um homem obcecado com a fama e com a barbárie. Em suma, um Homem que ambiciona o estatuto de Deus. Ulisses, menos colérico, embora com rasgos de perfeito animal selvagem, basta recordar o episódio do extermínio dos pretendentes, é alguém à procura de si mesmo, uma demanda inesperadamente contemporânea. Ulisses não fantasia, como Aquiles, com uma façanha grandiosa que o enobreça e o eternize.
Em termos muitos simples, Ilíada narra uma guerra exterior, enquanto a Odisseia nos exibe uma interior. Na Ilíada o poema acaba à beira do abismo, ao passo que na Odisseia é um homem a caminhar na orla do precipício, tentando regressar a um passado que já não existe.
Ulisses fica com Calipso durante 7 anos antes de decidir aventurar-se até Ítaca. Podia ter sido um Deus, graças ao poder da ninfa fodilhona, mas opta por voltar a casa, à sua Penélope.
Nesta questão Ulisses é nosso contemporâneo. Ulisses preferiu, como escreveu Irene Vallejo, as tristezas autênticas a uma felicidade artificial. E é aqui que nos distanciamos do herói da Odisseia. O Homem actual, diante desse caminho que bifurca, costuma decidir-se pelo paraíso artificial.
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