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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

09.03.23


Esta crónica humilde é dedicada ao Roberto Gamito, sem o qual seria praticamente impossível garatujar uma prosa de qualidade tão duvidosa.

Em tempos recuados, mas não tão recuados assim, uma vez que ainda faltam queimar alguns cartuchos e andam por aí pilas matreiramente cansadas à procura de jazigo, orgulhava-me de ser detentor dos mais baixos índices de eficácia no tocante à captura de grelo. Justificava-me que trocara a cona letrada por livros poeirentos, que fizera a escolha acertada porque o que conta é o conhecimento amealhado, pese embora o pau analfabeto. Acabadinho de sair da hibernação, de mamar aqui e ali no respeitante a referências, de engordar a cabeça com sofrimento alheio, o cérebro começava a engendrar os seus próprios rastilhos. O resto não conto porque a biografia é minha e aborrece-me inventar. 

Era um tipo assim para o provinciano que, segundo as boas e más línguas, dava mais ares de pastor do que escritor — que culpa tenho eu de ter nascido num século onde ninguém valoriza a patilha — e, para destoar, uma careca em construção.
Cara pouco vendável, um pançudo em formação, menino de uma estupidez sem fim à vista e uns tomates de fazer sombra ao diabo. Dava-me e continua-me a dar um certo gozo alfinetar os bichos (nunca me deu para ser outra coisa senão aquilo que sempre fui), desde borboletas a dragões, bolotas e maçãs míticas, plagiadores a virtuosos, maratonistas e coxos. Antes a escrita encostava-nos à parede, hoje, ao espelho. E eu cagando, nem cabelo tenho.
As voltas que a arte dá, parece um carrossel de trancadas dionisíacas, alguém que aproveite a diversão.
O embotamento do gume do humor, fosse a minha condição financeira digna de inveja e saía já da folha, é merecedora de uma procissão de carpideiras — e vá de choro, vá de choro e vá de choro.

Sejamos ou não amigos, não esperem por mim, não vou ajudar à procissão.
Não sou animal
Que consinta a captura sem dar luta e levar alguns comigo. Se for urgente, procurem-me na secção dos frescos, estarei à vossa espera: com a picha de fora. Consinto que toquem nela para ver se está madura. Não perguntem à senhora da secção se dá para levar metade, ou levam-na toda ou nada feito. Não me tentem com negociatas, nisto — e apenas nisto — sou intransigente.

O homem contemporâneo está imune a tudo o que mexe verdadeiramente, reparem bem na proeza do cabrão: de pé e em coma e já nada o faz abrir a pestana. Num fósforo o novo passa a obsoleto, o genial a mentecapto, deus a mentira — está aqui uma coisa esperta. Careço de feitio para esperar por um milagre, há que trabalhar com o que temos, este magnífico bando de papagaios acéfalos.

Tudo isto ocorreu num estalar de dedos, a magia atrasou-se e o pensamento ficou-lhe com o lugar. Pensamento? Calminha aí nas classificações. Cuidado com essas frases, bramam os autores flácidos. Eles que se fodam mais os outros que dormem de luz acesa com medo do bicho papão do cancelamento.

Nem eu vos entendo, nem vocês a mim: parece que estamos casados há trinta anos. É caso para dizer: o que diria Fernando Pessoa?
Mais uma rodada, uma vez que o imaginei num tasco. Mais um livro. Peço desculpa, só consigo imaginar artistas em tascos a pedir rodadas. Em suma, é a vida e os pormenores do mundo e o seu aeiou. E esses ratos anfíbios, que ora estão aqui, ora estão na cona da mãe, ora estão a masturbar-se com o futuro, ora a escavacar o passado com marretas próprias para pessoas com necessidades especiais, armados em leitores, que nem para limpar o cu pegam num livro; esse nevoeiro de parvoíce com que inundam as caixas de comentários, essa nuvem de dedos em riste com que metralham o singular, essa mistela perfeita de taralhoucos e críticos míopes que sonham opinar sobre a escrita de costas voltadas para as estantes. Não vos consigo levar a sério enquanto confundirem uma palavra nova com D.Sebastião. Estão cansados de esperar? Também eu. Enquanto isso, vão para o caralho.

 

Vacas magras


Roberto Gamito

06.03.23

Receio ficar órfão de uma das maiores figuras do contorcionismo português. Com uma flexibilidade de fazer inveja ao ginasta chinês, a nossa referência encolhe-se e espreguiça-se quando é altura de discorrer ou gaguejar sobre saúde mental, identidade de género, racismo, feminismo, gaming e, em pingando nos trends, comédia. A dúvida mantém-se. Tji ou Diogo Faro?

Sensível a certas causas, idiota a certos efeitos, que é como quem diz, negacionista da Terceira Lei de Newton, o humorista, o qual já foi filho do Diabo e de um sem-número de pares de tomates ao longo da História, basta queimar pestanas com livros dotados de letra miúda, é uma pinhata compósita que atrai para si uma chusma de paus ávidos. Lembro-me de falar com a minha agente, contou-me um palhaço de renome, e dizer-lhe: "levar com um pau no lombo tem tudo a ver comigo". Enquanto manobrador do pau, autor de futuras vergastadas, cabe-me a mim, supondo que sou um bobo no activo, singularizar o pau em prosa, isto é, pôr a cacetada em obra. Não é despiciendo frisar que a chibatada é uma chibatada figurada, que vem dar ao mesmo, uma vez que o verso atirado raivosamente na altura certa magoa mais que uma vara nas canelas. Tenho, como todos vocês, receio que isto acabe.

Não quero incomodar Deus com questões menores, todavia, em tempos não muito recuados, nos tempos em que as pessoas ainda pensavam, dez dias após os animais perderem a fala, o comediante tinha um trabalhinho que era um espectáculo — contagiar a turba com galhofa. Presentemente, há uma franja de seres pensantes que crê, religiosamente, que o humor serve para fazer pensar. Não me oponho, apenas retruco com este magro desabafo: quer dizer que há pessoas que concluem o ensino superior e meia dúzia de workshops, nomeadamente unhas de gel e empreendedorismo (começo a achar que é mais fácil fugir à morte que aos anúncios do Ricardo Teixeira, o empreendedor careca) passam pela vida sem que se acenda uma centelha no miolo, porém, em contacto com este humorista-filósofo descobrem as maravilhas de pôr a cachola a carburar. Pintando a cena a preto e branco, para acentuar o dramatismo e passar uma mensagem política acerca dos preços dos materiais de pintura, esbocemos mentalmente um macho analfabeto, amiúde tóxico, seja pelo discurso, seja pelo hálito, todo esfarrapado a fruir do seu chorudo ordenado mínimo num bar, a molhar o bico numa Cergal enquanto ouve uns comediantes amadores testarem o seu material. E eis que o nosso macho renascido cogita: "compreendo o teu ponto de vista, devemos ser mais empáticos, no entanto se este cabrão faz mais uma piada sobre o Benfica vou-lhe aos cornos."
Outro testemunho: "Comecei a gostar dessas ideias do ponto de vista estético, pintei as unhas e quando dei conta já era feminista."

O Diogo Faro é para os humoristas o que The Office ou o Seinfield são para os humoristas: imperdível. Como série de conforto, uma espécie de Friends cujo orçamento foi todo para as camisas(1), há que revisitá-lo vezes sem conta, é como um clássico, de cada vez que mergulhamos nele somos surpreendidos e encontramos outra gralha.

No que toca à inércia, falhas de comunicação, as carambolas entre as pernas do eco, a vontade de terminar frases com palavras como 'empatia', 'privilégio', 'tóxico', a arte de prosseguir as conversas aos solavancos, bem como encavalgamentos dignos de um poeta beatnik em apneia, e uma miríade de qualidades que lhe são atribuídas sem haver polícia ao barulho, bem como a qualquer humorista, e daí a tese que são pertencentes à mesma espécie, o Diogo é um caso de estudo. Tudo isso é desculpável, só não lhe perdoo o desprestígio a que votou a palavra idiota. As levas de haters que brincam com as metamorfoses acríticas do termo esvaziaram-no de sentido. Idiota é do Diogo Faro como o Algarve é dos estrangeiros.
Basta de farpas, o meu amor pelo humorista activista é como as rendas em Portugal: não pára de aumentar.

Fazendo um paralelismo com uma área que fica nos antípodas do ofício do Diogo Faro, o Humor, essa arte de malditos, é pôr a liberdade por extenso. É um pouco como falar à parva.
Recolhi pareceres jurídicos para saber se é possível chamar Diogo Faro de Humorista. Porém, como não percebo patavina do linguajar dos juristas, fiquei na mesma. Contentemo-nos com a suposição.

O humorista activista, ao contrário da gorda, a mim não me convém. Mas qual é o problema do activismo ecléctico? Empreguemos a mangueira num cenário de incêndio, a qual raramente é usada em terreno poético. Esses bombeiros confusos e amiudadas vezes acagaçados, solícitos a apagar fogos ilusórios das redes sociais e a fugir a sete pés dos verdadeiros, parecem não perceber as limitações da mangueira. Ao tentar apagar mil fogos em simultâneo, dividem as pingas pelas aldeias, resultando em coisa nenhuma. No máximo refresca a poupa, mas o mundo arde na mesma.

Admiro a criatividade selvagem de Diogo Faro, inspirado em Nietzsche põe em prática "não há factos, apenas interpretações" (2). Aproveita tudo o que lhe bate à porta, excepto Jeovás, a isto se chama sustentabilidade. Um apodo que lhe assentaria bem: respigador das redes. O que é difícil não é encontrar o amor, difícil é dar de caras com um insulto original quando o alvo é o Diogo Faro. Proponho até que, daqui em diante, os cursos de escrita criativa se apropriem desde desafio — criar formas inéditas de insultar o Diogo Faro. Não consintamos a sedução por parte de facilitismos do tipo 'burro do caralho', somos melhores que isso. A quem alcançar tamanha proeza será dado o título Super-Camões. Não obstante o desafio embasbacante, não me devo amedrontar. Eis a minha achega, tomem lá uma saraivada de meiguice: polícia de machos, evangelista com paleio importado, paladino do pipi indefeso, monge da inocência, uma vez que são os outros que lhe descobrem a careca, sumo pontífice da baboseira, catapulta de 'humorista', câmara de eco de meia dúzia de citações rapinadas a um doente de Alzheimer, câmara anecoica do seu ego, laracheador indeciso, sacristão da virtude, perito em matéria de toxicidade masculina, analista do vitimário feminino, promotor do vício (também não podem ser só coisas más), portageiro do twitter, árbitro das carícias, fiscal do orgasmo; cumpri, já contribui para o peditório. Tentem vocês agora.

Se tenho alguma coisa contra o Diogo Faro? Nada, a não ser a sua omnipresença. Uma coisa que nunca lhe perdoarei. Respira fundo, não te podes irritar, Roberto. Volta e meia estou eu a espairecer, que é como quem diz, a vagabundear pelo Instagram à cata de mamalhudas, um espécime capaz de me fazer acreditar em Deus e no Diabo em simultâneo, e, inocente, parto turisticamente rumo à legenda da foto, que eu gosto de me instruir, e apanho, de chofre, uma citação de Diogo Faro. São tetas, Diogo, não tens lugar de fala, deixa o decote falar na sua língua. Não oprimas os seios com o teu papaguear. Retirando o bigode desta prosa, mudando de mão, como diriam os poetas, é uma tristeza, uma decadência, o Diogo Faro surripiou o lugar sob as tetas que antes era ocupado por Fernando Pessoa e Saramago. Depois digam-me que a literatura não está a morrer. 

Mas o Diogo Faro não é assim como o pintas, comunicam-me a esbracejar, deixando cair as cartolinas. Vamos lá ter calma, às tantas só me falta dizerem que o Diogo Faro é apenas uma prótese de última geração dentro da qual está o Brendan Fraser, protagonista no filme A Baleia, a escarafunchar o maroto.

Enquanto activista praticante, uma vez que não faço outra coisa senão conversar com velhotes, já me ri com o trabalho do Diogo Faro, não me orgulho, mas já pedi a Deus para me perdoar.
Desabafei; e viveremos felizes para sempre, caso o Diogo não problematize este lugar-comum.

Em todo o caso, há uma pergunta que paira sobre esta crónica. A sua razão de existir. É simples: a série à volta da personagem Diogo Faro, temi que esta fosse a minha última oportunidade de confeccionar comentário humorístico sobre o nosso poeta.

Escudam-se no 'é só uma piada'. Isso é o escudo polido de Atena do humorista. Vocês não estão preparados para ter esta conversa. 

(1) No capítulo do estilo, os humoristas portugueses vêem-no como um mestre. Aristófanes é o pai da Comédia; Faro, o pai das camisas vistosas.

(2) Forte candidato a um lugar no Guiness como ser humano com mais interpretações ao lado. Uma espécie de Umberto Eco, mas sem o primeiro nome.

 

Diogo Faro, Crónica humor, _Roberto Gamito


Roberto Gamito

20.08.22

Desconfio do Homem, o qual possui mais anos de manha que de escrita. Essa criatura ocasionalmente vertical faz de tudo para vender a sua história, para manter viva a sua reputação ascensional. Há dias veio-me uma ideia à memória. Nada do que vou dizer a seguir tem fundamento, é apenas uma sensação, como se costuma dizer por estes dias.
 
Há uma tensão antiga entre o Homem e a comédia. Aristófanes referiu-se ao problema umas poucas de vezes nas suas peças. Havia comediógrafos a desaparecer misteriosamente ao parodiar poderosos e por aí diante. O bobo está sempre com um olho no rei e outro na guilhotina. A vida do bobo está sempre presa por arames. O que muda de época para época é a forma de assassinar o bobo.
 
Há obras literárias perdidas (em princípio para sempre), contudo há, aos meus olhos, uma propensão para o Homem se esquecer das obras de pendor cómico. Ou uma propensão para as fazer desaparecer, se formos mais cínicos. Um exemplo célebre é a comédia de Homero, Margites, a qual narraria as peripécias de um estúpido olímpico. O que me levanta suspeitas ao mesmo tempo que me proporciona um esboço do Homem. A Ilíada enaltece o Homem enquanto criatura de sangue, enquanto a Odisseia narra a viagem simultaneamente interior e exterior de um homem, Ulisses. Assalta-me a ideia de que o Homem prefere ser falado como máquina de guerra ou desnorteado a ser apelidado de estúpido. Com efeito, ninguém é lembrado por ser estúpido.
Este é apenas um exemplo entre muitos, a obra Satyricon, de Petrónio, o qual terá sido próximo do imperador Nero, chegou ao nosso tempo bastante mutilada. Segundo certas fontes, o original seria um livro enorme, provavelmente maior que o Quixote.
 
Outro exemplo: a parte relativa à comédia da poética de Aristóteles foi perdida. Homero, provavelmente o maior poeta de todos os tempos, Petrônio, a par de Apuleio, o pai do romance picaresco, e Aristóteles, um dos maiores vultos da filosofia ocidental.
 
Será que foi intencional? A comédia foi mutilada porque o Homem não queria ser recordado como animal risível?
 
Escrita em 20-8-2020

Relação do Homem com a comédia


Roberto Gamito

15.08.22

Por estes dias em que as praias algarvias perdem a sua antiga fama de cenário idílico ao receberem sem restrições temperaturas pouco amigáveis, dignas de um trailer cujo intuito fosse apresentar a diversidade climatérica do mundo a um demónio estrangeiro, ou seja, vai do calor desértico ao frio glacial num estalar de dedos, o qual nem necessita de ser divino, uma vez que o homem já pôs o seu dedo burguês e gorduroso no tempo e escavacou a bom escavacar as estações, agarrando com mérito todos os papéis da biodiversidade animal, o Algarve recebe ventos e os seus caprichos, coisas que, parecendo que não, só fomentam uma ida descansada à praia sem rabugices, dias em que tentamos comer uma bola de berlim em passo de fugida, duplamente assados da cabeça aos pés pela areia e pelo sol que nos atravancam o caminho para a felicidade, enquanto tentamos evitar que um guarda-sol, que anda no ar estúpido e alegre como um papagaio-de-papel, nos bandarilhe severamente o lombo magistral que tanto nos custou a criar. E já esquecendo as algas, que este ano embirraram com o areal algarvio. Estas, as algas, assemelham-se a lisboetas naufragados da nau do quotidiano acabados de dar à costa, parece é que tudo delas. Das algas. Respirando fundo, ganhando fôlego para mais uma ficção, que é como quem diz, vendo pelo lado positivo, o facto de o areal ser por estes dias gagamente verde pode permitir aos futebolistas de praia, praticantes desse, como direi, desporto camponês, partindo do principio que o futebol é o rei, se entreguem de unhas e dentes à prática do paleio com a bola e descubram, entre peixe que por lá estrebucha e algas, uma nova forma de desfrutar do sushi.

Porém, não foi isto que nos trouxe cá, apesar de a canoa do escárnio ter servido belamente a sua missão. É tempo de a deixar vogar no lago plácido do marasmo. O que me indigna até à penugem dos neurónios, e faz com que gere sinapses dignas de um ditador, é o facto de as rendas neste país denominado por muitos entendidos como Portugal estarem cada vez mais proibitivas. Praticam-se preços de tal maneira altos que, se uma pessoa não catapultar a carreira até aos 35 anos, e, tendo recorrido a todo o tipo de estratagemas, seja pela via do mérito, seja pela via do boca ou do ânus, se estiver impedido de ganhar um milhão de euros mensais, a melhor coisa a fazer é ponderar o suicídio. Um suicídio modesto, nada de teatros caros e espalhafatosos, que a vida não está para grandes loucuras. Chegará a um ponto em que os portugueses terão de pegar no que conseguiram poupar durante uma vida e comprar umas braçadeiras em segunda-mão e emigrar para o Oceano Atlântico, onde poderão prosperar como amigos dos golfinhos, excepto as mulheres pequenas, que, como se sabe, são descritas como sardinhas por alguns provérbios e os golfinhos, como é alertado pelos biólogos contemporâneos, levam-nos muito a sério, aos provérbios, sendo que, o mais provável, é que a mulher sardinha seja comida por esses simpáticos cetáceos (simpáticos, o tanas, têm é boa imprensa; até os tubarões têm medo deles) sem poder apresentar queixa, já que o oceano, como Portugal, é uma terra — sim, introduzi deliberadamente uma chalaça — sem lei nem roque.
Adoptando uma postura mais séria, até porque a de carpideira não me traz saúde às cruzes, faltará pouco para o sem-abrigo principiar a lucrar e poder arrendar, tudo dentro da lei, como é evidente, o seu cartão polivalente, o qual é uma espécie de caravana onde as rodas foram substituídas por umas muito robustas duas perninhas.

Cá para mim que não percebo nada do mundo, e como tal reúno todas as características de um bom comentador, a inflação de preços no mercado imobiliário em Portugal deve-se a uma competição onde todos os sítios em Portugal querem alcançar os valores praticados na Quinta do Lago, onde, segundo o Público, comprar casa de dez milhões já é coisa banal. Dito de forma mais poética, a Quinta do Lago é a musa que inspira os preços das casas, contentores e restantes palhotas a subirem de preço, a serem, em suma, mais do que são. Dito ainda de outro modo, a Quinta do Lago é, mesmo sem saber, uma espécie de guru motivacional para o mercado imobiliário em Portugal. Aqui é que bate o ponto: alguém que pratica uma banalidade ao comprar uma casa de dez milhões não é bem português. Um português típico, no qual eu me incluo com a minha carteira enfezada, é aquele que pondera durante quinze dias se compra um corneto. Uma decisão mal tomada e empecilhamos uma vida inteira.

Todos sabemos que a lei, ou uma das suas mil e uma interpretações, cada cabeça sua sentença, já diz o povo, é mais dócil com o pessoal cheio de graveto. A lei gosta de dar a patinha ao bilionário. Sociologicamente falando, tenho para mim que o bilionário é o consumista depurado, aperfeiçoado ao limite. Cheio de tiques, embirrações, postura infantil face a tudo o que mexe, com uma diferença: entre aquilo que o bilionário quer e a sua consumação tende a não haver burocracia. O bilionário quer um edifício demolido: mobiliza-se logo um arsenal de mordomos para o fazer, o mais prontamente possível. E tal não impressiona ninguém. Se o dinheiro é o novo deus, como já foi dito e redito por autores nos últimos séculos, então o bilionário é o novo faraó, aquele que mantém uma relação privilegiada com Ele. Quanto aos restantes, empacotados na pose consumista, tipos que choram ao ver o preço dos pinhões, resta-lhes berrar e trabalhar que nem cães a fim de obter um bocadinho de céu, visto que a terra nos foi negada.

Portugal, aos poucos, está a tornar-se aquela loja de luxo onde podemos entrar mas não podemos tocar nem comprar nada, por muito que nos esfalfemos e nos levemos ao limite. Este país já não é para nós. Se ainda cá estamos, e não nos escorraçaram, é porque somos nós que garantimos os serviços mínimos.

o preço dos lotes no céu


Roberto Gamito

06.08.22

Homens, estamos a ficar fartos dos prazeres fáceis do mundo contemporâneo, a saber, pornografia e Instagram de mulheres cujos seios apetitosos (se os olhos comem, os dos homens estão sempre de pança cheia) nos levam a comentar a sua actividade virtual com frases descabidas do género: "tu inspiras-me", "és a luz da minha vida" e assim por diante até invocarmos toda uma literatura de cordel capaz de provocar rubor no mais Chagas de entre todos os Chagas. Como escrevia o outro estudioso, nada muda, as verdades actualizam-se e é preciso estar

— isto é um acrescento da minha lavra — de olhinho bem aberto para não comprarmos teorias usadas a preço de novas.

"És a luz da minha vida" é uma expressão degenerada e higiénica da frase "mandas grandes faróis". Embora grande parte dos teólogos discordem, "és a luz da minha vida" é pôr as mamas a ocupar o lugar de Deus. Nada a apontar, é um raciocínio ao qual não oferecerei resistência, até porque o raciocínio é meu. Um gajo anda no terreno e sabe como as coisas se processam. Se as mamas tornam os homens melhores então merecem o papel do Deus, de Jesus e dessa pandilha cujo intuito é salvar o homem. As mamas salvam. Estampem isso numa t-shirt.
É claro que, pegando no início no texto, carecemos de registos de que o homem possa ter dito na sua história algo como "estou farto de mamas, preciso de parar de olhar para elas, caso contrário vou acabar na desgraça." Nunca houve um homem saturado de mamas, ao ponto de até o feed do Instagram o deixar indiferente.

Antes de adentrar no raciocínio anterior, acho que não é totalmente descabido catapultar uma ideia. Criar um "mamómetro", um dispositivo que permitiria ao homem saber, no recato do seu lar, o grau dependência de que padece relativamente às mamas. Pois tal pode vir a ser problemático.
De momento não me preocupo com espécimes masculinos que teriam alcançado patamares de excelência se não tivessem perdido décadas inteiras a vistoriar tetas, não, esses ficarão para outro texto. Interessa-me, sim, os casos extremos, teóricos, uma vez que não conheço nenhum caso.

De Paracelso chega-nos a frase catita, a dose faz o veneno. Se assim é, há um nível a partir do qual as mamas se transformam em veneno (não veneno simbólico, isso já foi reportado pela poesia). Um veneno à séria. Então vamos lá atacar as mamas, salvo seja.
Imagino alguém a dar as últimas numa cama sob o olhar atento de um médico, o qual ignora o que está a acontecer ao seu doente, uma vez que a medicina está muito atrasada para se bater de igual para igual neste terreno pantanoso.
E eis que o morto-vivo declara: Senhor doutor, eu vi demasiadas mamas. Isso envenenou-me. Devia ter parado enquanto era tempo, agora é demasiado tarde. Sabe lá quantos telepatas eu enlouqueci. A minha vida gravitou em torno das tetas, esse foi, declaro sem medo, o meu sol.
No fundo, tornei-me no melhor olheiro de tetas do mundo. Podia ter ganho rios de dinheiro com isso, mas isto é como a droga, se uma pessoa principia a consumir está tudo estragado. Com efeito, sou um devoto das tetas.
Não é preciso ser nenhum Newton, respondeu o médico, para saber que você entrou no plano inclinado da desgraça e não há forma de impedir que vá parar ao outro mundo.
Quer dizer ou fazer alguma coisa antes de morrer, continuou o médico.

Pretendo deixar uma dica aos vindouros, o meu legado para os beneficiários de um antídoto que há-de vir. Cá vai.
Entram num sítio atafulhado de mulheres, arranjam, mal entrem, uma boa posição estratégica a fim de examinar o território, como um chefe de uma tribo ou um predador, e de seguida podem passar a noite a vistoriar fruta com um ar particularmente delicioso. E não me lixem, não estou a coisificar as mulheres. Fruta é fixe, faz bem, você é um profissional da saúde não me deixa mentir.
Mas isso já nós sabemos, retrucou o médico.
Então a minha vida não teve qualquer significado, finalizou o devoto das tetas, fechando os olhos.

O textinho acabou: estou saturado de mamas.
 

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Roberto Gamito

06.08.22

Incapaz de arquitectar uma crónica ardilosa que possa ser vindimada com gosto pelas pupilas dos vindouros, prenhe de altos e baixos frutíferos aptos a entusiasmar até o mais exigente leitor, criatura capaz de espremer o rouxinol com o fito de despertar o que se acoita nas reticências, resta-me — oxalá as forças não me deixem a patinar neste lago siberiano da escrita onde, círculo após círculo, engrandeço a minha prestação diante dos júris do ridículo — esfrangalhar a mão contra as rochas do quotidiano à espera que o sangue encapelado desse embate me ofereça umas míseras linhas. A vida, supondo que isto não é um sonho, ou um holograma ou uma história engendrada por um deus com pouco que fazer, é pródiga em enganos, fértil em escaramuças e, em havendo tempo para procurar, poiso predilecto de insignificantes pepitas, nomeadamente paixão, amor e banquetes de fazer brilhar o olho ao mais criterioso glutão. Em jeito de súmula, a vida acontece à revelia da nossa vontade.

O bêbedo olha para mim e eu retribuo o olhar e ficamos assim, sem deixas, como dois palermas sem guião. O que não abona muito em favor quer de um, quer de outro. No cume da minha ingenuidade, quase acreditara ter encontrado a nascente da inspiração. Equivoquei-me, é um bêbedo raro, daqueles que não partilham nem por nada as suas histórias e teorias. Assim sendo, lá terei de continuar sem o milho da inspiração terrena, enfim, sou tomado de incertezas quanto aos fados desta crónica. Prossigo, portanto, de mão vazia e a tremelicar.

À minha frente, com uma camisa cujas cores deviam dar prisão sem direito a julgamento, um homem que, se descontarmos os poucos cabelos, que se exibem na tola do animal como um tufo humilde num deserto, é careca. A criatura a que muitos chamam homem é acompanhado por uma mulher que dá ares de esposa, sei-o pela forma severa como repreende o marido, a eterna criança a necessitar de chibatada. A mulher — juro-vos não estar a inventar para fins de comédia — possui uma camisa igual à do marido. Não me perguntem como é que ainda não se criminalizou isso. Uma pessoa inocente, vítima insofismável, olha para esse cenário desconcertantemente garrido e apanha um trauma que o acompanhará até à cova. Até digo mais, sou dotado de um conhecimento enciclopédico no tocante ao gostinho que as mulheres têm em fazer com que os homens passem por parvos, como se fosse uma tarefa que exigisse grande esforço, daí que esteja em condições de afirmar, embora o negue se for confrontado por alguma feminista, que a mulher obrigou o homem a fazê-lo. Até acrescentaria: a mulher detesta a camisa. No fundo, o que a mulher está a declarar com este comportamento é: vejam, casei com um paspalho, consigo vesti-lo com a camisa mais ridícula de todas, mais, vestimo-nos como se fôssemos gémeos carrancudos e ele nem pia. Contemplem o poder da vagina! Um aviso claro às outras mulheres. Vejam, este espécime está totalmente domesticado. Ao depararem com este ser agrilhoado, as mulheres dirão aos maridos: estás como queres, mas isso vai mudar, não me casei contigo para andares aí como se fosses um animal selvagem. Anda comigo ao shopping, vamos comprar as camisas mais medonhas que encontrarmos. Vai-te fazer bem ao ego, murmura a mulher com um sorriso de orelha a orelha.

Mulher, domadora de homens


Roberto Gamito

04.08.22

Com toda a estima que o mundo me merece, essa bola gigante que anda às voltas do sol como se tivesse larapiado a pochete a um asteróide, devo confessar que não me impressiona por aí além em matéria de beleza. Ao menos se fosse um cometa que adquire farta cabeleira nas redondezas do sol, agora uma esfera careca não produz grande ânimo na minha pessoa. Após ver por alto meia dúzia de postais que ilustram os sítios alegadamente exóticos obtemos uma imagem nítida e insofismável sobre o planeta. Há água, há florestas que, como declarou e bem o sábio Bolsonaro, só servem para causar incêndios, animais, a maioria intragáveis, pelo menos se formos ocidentais, e equívocos em todos os meridianos. Este sentimento de respeito infinitesimal tem razão de ser. Não me querendo armar em Bazarov, o primeiro niilista, continuo a não acreditar na existência do turismo num planeta destes. Uma tarde a ver documentários da National Geographic e está visto, não vale a pena pagar bilhete. O facto de haver vida neste planeta não me surpreende, os animais vivem em qualquer buraco, já o turista, que está habituado a certas condições de pessoa de nariz perpetuamente empinado, levanta-me certas dúvidas e desperta-me outras tantas comichões. Províncias estrangeiras, curiosamente, recebem pessoas que nunca lá estiveram com boas-vindas e não com tiros de canhão, tal como aconteceu na Rússia, em 1825, ao esquadrão de insurrectos. O turista é uma criatura cuja fé, a qual podemos desdobrar em crença de ver algo novo e encontrar a paz, sobrevive, no máximo, uma semana. Findo esse período de delírio, o turista dá conta que o melhor era ter ficado em casa a mandar vir com as paredes e a cavaquear com as osgas. Além disso dá-se conta do mau negócio. Viajar para um sítio em que não conhece ninguém e que nada tem que ver com ele só para actualizar as redes sociais com fotos de qualidade duvidosa. Como o leitor mais sagaz terá notado, o turista é vítima de uma burla. Tenta cria amizades com bichos autóctones, mas as araras não lhe passam cartão. Para elas, o turista não passa de mais um ser vertical com chapéu de palha. Além disso, põem repelente para afastar os problemas, porém eles acabarão por vir. Os problemas e os mosquitos. Quanto a mim merecidamente, enfarpelar-se com roupa duvidosa só porque se está de férias causa um desequilíbrio no universo que deve ser punido.

Aníbal Joaquim mal saíra de uma relação quando foi desassossegado por uma mulher que casava vistosamente o corpo com o seu vestido, mulher essa autora de um gingar de anca diabólico capaz de arrancar um sorriso ao mais antigo dos cadáveres; em suma, arrancou-o do pântano do marasmo onde, diariamente, há pirotecnia ininterrupta de ideias destrutivas. Em ambiente de férias, somos levados a acreditar em coisas que não existem. Quantas religiões e cultos não terão começado no verão, aproveitando o facto de as pessoas estarem indefesas e de chinelos, feitas turistas.

Mas este texto não é sobre o Aníbal, paz à sua alma de veraneante.

No auge do entusiasmo, que acontece algures na primeira semana de férias, o turista alega: "isto é que é vida". Aparentemente inofensiva, é vista como ofensiva para quem trabalha na restauração nesses sítios paradisíacos. O que é Paraíso para uns, para outros é o Inferno. O Bem e o Mal, uma vez mais, dependem do observador, como já nos ensinou a História.

Esta crónica não estaria completa sem a referência mais macabra de todas. O ser estúpido, que não tem outro apodo, que diz: quero conhecer pessoas novas. Dando de barato a inocência, é uma ideia pouco convicta que se esfuma passados uns dias. Desfeito o frágil feitiço das férias, o turista percebe a imbecilidade que é tentar conhecer pessoas quando as há em todos os sítios, até bem perto de casa, segundo ouviu dizer. Aliás, essas pessoas parecem-se muito com aquelas que andou a evitar o ano todo. Doravante percebe que a felicidade é impossível. E começa, pouco a pouco, a despir mentalmente a farda de turista. Aos poucos regressa ao seu mundo. Ao vê-lo tristonho e sem esperança dá vontade de lhe dizer: Isto é que é vida.

 

turista e o feitiço das férias


Roberto Gamito

31.07.22

Túnel de Vento é simultaneamente um podcast de comédia e um erro.

Há improviso, humor, lamirés sobre literatura e poesia e, de longe em longe, javardice de elevado quilate.

De Roberto Gamito e suas vozes.

Uma hora e quinze de cabeça faminta.

 

tunel_de_vento_600.png

Apeadeiros da conversa:
.Os gafanhotos são vândalos.
.Reflexão sobre os golfinhos.
.O lagarto bombeiro.
.O cão, o actual melhor amigo do Homem.
.Cavalo, o antigo melhor amigo do Homem.
.Humorista Mongol.
.Os cavalos não existem.
.Golfinho, o futuro melhor amigo do Homem.
.O bacalhau inspirou-se no ser humano.
.Se Deus quiser.
.Deus te abençoe.
.Meteorologia antes da invenção do termómetro.
.Repensar a nossa relação com as formigas.
.Meditação sobre a prisão de ventre.
.Fisioterapia badalhoca.
.Sumo de maçã.
.Saco reutilizável e cão.
.A minha vida foi um grande erro.
.Reflexões sobre o artista.
.Frases e citações soltas.
.Não sei fazer nada.
.Ensacar e o olhar reprovador.
.Adultério na Idade Média.
.Temperança.
.“Foi apanhado a beber”.
.Bêbedo activista numa operação stop.
.E mais.

Podem ouvi-lo no Spotify ou em qualquer plataforma de podcasts. 

 


Roberto Gamito

21.07.22

Se me proibissem o uso de palavrões, seria incapaz de exprimir com pertinência a tempestade que me povoa o cérebro quando observo de olhos esbugalhados e de boca escancarada as matilhas contemporâneas a apedrejar infatigavelmente o comediante, esse saco de pancada universal. No entanto, urge vestir a bata da seriedade, não confundir com a do médico, que esse é um burlão, diz que trata da saúde às pessoas mas raramente distribui sopapos aos pacientes, e munirmo-nos, não de um bisturi, mas de um facalhão apropriado para a dissecação destes temas comichosos.

A relação actual das massas com o humorista é prenhe quer em algazarra, quer em sentido. É como se fosse uma bulha ininterrupta: há sempre alguém a apanhar, sempre alguém a gritar e, como não podia deixar de ser num evento de luta destas dimensões, sempre alguém a comentar. Desconfio que podemos encontrar o Homem do século XXI tal como ele é, desnudo e mínimo, se aprofundarmos a compreensão desses fenómenos.

Segue-se o inventário compacto das minhas comichões.

1) Somos endeusados pela indignação.
A partir do momento que faz a sua apreciação negativa à laracha, o ser humano típico das redes sociais é impelido por uma necessidade indomável de verbalizar a sua reacção, dado que, neste século, não há nada que deva permanecer na esfera privada. Seria estúpido da parte do indignado sentir-se furioso e não tentar lucrar com a situação, seja esse lucro de pendor monetário ou de pendor reputacional.

Quando possuído pelo espírito da indignação, o Homem salivante sente-se legitimado para tudo e mais alguma coisa. A chalaça não me caiu no goto, logo sou estúpido (segundo o meu humilde parecer de observador autodidacta), logo vou linchar o déspota da laracha. A piada e principalmente o autor da piada levam no lombo e, reparem como isto fica perverso, a vítima nem sequer tem o direito de se queixar da pancada. Caso se queixe, é novamente alvo de críticas. O chamado mamar e calar. É preciso frisar a tinta fluorescente que estes bárbaros eram, até há minutos, acólitos da empatia e segredavam entre pares que o mundo precisa é de amor, compreensão e diálogo. Lá foi a máscara de boa pessoa para o galheiro.

2) Julgar um padrão graças a um ponto.
Este século é fértil em estupidez e em contradições. As pessoas não se inibem de comunicar-nos que não gostam de ser julgadas são as primeiras a julgar, não uma, mas milhares se estas forem contra a sua opinião. Se não acho graça, ninguém pode achar graça. Aliás se acharem graça são todos doentes, nojentos e outros apodos que ficam bem no currículo de qualquer canalha.

Embora seja um espectáculo deveras entusiasmante julgar alguém à queima-roupa por um acto, neste caso mínimo, a apreciação de uma piada, não posso deixar de dizer que é um comportamento enervantemente pueril. Ninguém consegue julgar uma pessoa com base em algo tão insignificante. Para percebermos a tendência necessitamos de vários pontos e de muitas experiências. Estes meninos raivosos, os quais se dizem amigos da ciência, comportam-se como se fossem profetas. Só eles sabem a verdade.

Como diria o outro, o eclipse da razão será a nossa desgraça.

Mas vamos dar uns minutinhos de folga ao cérebro e mudarmo-nos para o seguinte cenário. Eles têm razão: é possível julgar uma pessoa com base numa reacção a uma piada. Imaginem o ganho civilizacional que seria. O suspeito seria julgado com base numa piada dita ofensiva. O juiz contava uma laracha de humor negro; caso o tipo esboçasse um sorriso, era condenado, caso contrário, seria inocentado. Só tinha um inconveniente: o juiz seria descartável, só dava para um julgamento.

3) Eu é que sei o que é humor.
Em tempos idos, o Homem chegou a um consenso de que o humor, tal como as restantes artes, tende para a subjectividade. Não neste século. O mal dos viciados pelo literal é que são cegos para a profundidade. Só existe o que eles vêem; infelizmente não vão além da superfície. Resultado: os outros, aqueles que mergulham em apneia nas coisas, são apelidados de criminosos ou coisas que tais. Em suma, cegos tentam-nos, por todos os meios, impingir a sua visão.

4) O humor actual transformou-se numa troca de galhardetes.
Como estamos a viver numa época em que o narcisismo dita os nossos comportamentos, tudo o que não vai no sentido do elogio, de nos afagar o ego, é visto como nocivo. Daí que a designação do que é considerado ofensivo cresça de dia para dia. Se a tendência da indignação continuar a arrebanhar temas, chegaremos a um ponto em que a comédia estará restringida ao elogio claro ao outro. Os risos hão-de surgir, mas surgirão como simulacros. Será um riso tipicamente de rico quando, numa festa em que pode lucrar de algum modo, o Homem soltar uma gargalhada falsa a fim de criar uma noção fictícia de proximidade.

5) Lá estão vocês com a liberdade de expressão.
Uma frase muitas vezes atirada aquando o rescaldo de uma piada.
Aos olhos actuais, a liberdade de expressão tornou-se um luxo. Por um lado não há censura, como tanto gostam de propalar os amigos do politicamente correcto, por outro, não se pode sequer mencionar a liberdade expressão. Ela existe. Quem é que existe? Não se pode dizer. Uma espécie de Voldemort.

6) Quem se ri é doente.
Usando um raciocínio análogo ao do tribunal e do juiz, seria a morte dos diagnósticos médicos. Não sabemos se estamos doentes, então pedimos a alguém que nos conte uma piada. Se nos rirmos, estamos doentes, se não rirmos, podemos dormir descansados. E um acrescento de graça: o homem sem posses foi possuído pelo milenar comportamento do rico, o qual sentencia: se não te ris és dos nossos, se te ris és tantã. 

7) A desproporção entre a piada e a reacção.
A piada, por muito má que seja, é uma piada. E é aqui que o faroleiro incumbido de ajudar os barcos da virtude dá um tiro no pé. Ao reagir à piada que detesta estupidamente, deseja a morte ao comediante. É como adquirir uma bomba atómica para matar uma mosca.

Uma última palavra aos agrimensores da piada: amor. Desejo-vos tudo de bom. Não estou a ser irónico. Não desejo mal a nenhum de vocês, nem à vossa família, nem tão-pouco que os vossos cães morram da forma mais cruel possível. Não desejo isso a ninguém, mesmo que sejam indignados profissionais.

 

the jester.jpeg


Roberto Gamito

23.06.22

“Tens graça, muita graça.”
Eram palavras de mau augúrio para aquele simplório, o qual as recebeu como sinal divino, nunca pronunciadas com tal vivacidade; palavras mágicas conducentes a uma vida desgraçada de laracheador profissional regada ora a apupos, ora a aplausos. Planta bizarra, pensará o leitor mais macaco.

Veio para cá, para os arrabaldes das redes sociais, com uma grande reputação de humorista. Mas não se aguentou muito tempo agarrado ao apodo, à decima piada já havia sido despromovido a burro do caralho — e tal não espanta ninguém. Num mundo em que os critérios são voláteis e em que a competição entre franzinos norteia chapadas e diálogos, as pessoas valem tão-somente a sua reputação. A fama é uma longa estrada ensaboada para o desastre. 

Findo o espectáculo despovoado de gargalhadas, o bicho ontem intitulado hilário esmoreceu prematuramente. Realisticamente falando, podemos observar que o homem perdera meio metro de confiança. Supondo que começara com 2 metros — hipótese improvável neste país de pequerruchos talentos —, teria somente mais três tentativas falhadas antes de desaparecer. 

O ponto de viragem sucedeu numa interação com o público. Engodado por um comentário de uma mulher de fartos seios e com um sorriso carregadinho de luxúria, abalançou-se inocentemente para uma deixa achavascada que lhe valeu o silêncio sepulcral da sala. És muito interessante, disse ela entre piadas, guilhotinando o silêncio. Aproveitando o comentário, o humorista lançou-se barbaramente à presa: “É em mim que pensas quando estás sozinha no quarto a tocar uma guitarrada de clitóris? Com que então o desejo armado em ventríloquo dos teus dedos”. Arrepia ver tanta estupidez e tanta falta de timing concentrada numa única frase; a segunda, convenhamos, ainda escapa. Suou adverbiosamente tentando reparar o sobressalto de braguilha, porém o mal estava feito.
A postura alterou-se de chofre. O passeio sem falhas no palco deu lugar a um manquejar próprio de putinho com sapatinhos de croché. 

Tudo se desconjunta ao som do apupo e da crítica inflamada, por mais incisiva que fosse a piada, era incapaz de pôr cobro ao chamejar daquele vasto incêndio. O “sai do palco” gritado a mil e a uma goelas erigira uma pira na qual ele seria consumido até ao esquecimento. 

Apagadas as labaredas, arruinado o palco, silenciada a cólera, cada algoz à paisana voltara à sua vidinha e aos ódios miudinhos.

 

ódio miudinho

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