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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

01.06.24

Novo episódio do podcast Tertúlia de Mentirosos. 

Carlos Moura. Humorista.

Deambulámos por uma enormidade de temas, a saber:

São Bernardo e resgate de pessoas, Os cães e a necessidade de agradar, Somos a raça que quer morangos o ano inteiro, A culpa e o activismo, O progresso é amiúde adicionar prateleiras, Santa Casa e NFT, Amadorismo na política, 25 de Abril, Abundância mascara a miséria, Países nórdicos e minimalismo, Usar termos ingleses, A musicalidade do português do Brasil, Dissecação da expressão “isto está a dar prejuízo”, gestor no palco da economia, Os números tornaram-se subjectivos, escola Monty Phyton, Empresas e o culto do ego, Gestor elevado a ídolo, Linguagem positiva e a comédia, Pulseira do equilíbrio, Programação neurolinguística, Fernando Rocha, Palhaço Slava Polunin, Bit sobre o Rei dos Frangos, Rever as primeiras actuações, Bit do Duarte Pita Negrão, “Queremos músicas inteligentes", Comédia para não chatear ninguém e a superioridade forjada de quem faz humor negro, Marcos Bilro e a Maddie, Afinar a actuação consoante o público Crowdwork: solução ou problema?, Masterclass de Crowdwork, crowdwork é funambulismo, Dara Ó Briain, “Uma das coisas que mais me custou na comédia”, Noites más, O riso que ando à procura, Perguntas, “Demorei anos até encontrar uma persona em palco”, IA e comédia, Processo criativo 

Ouvir episódio aqui:

 


Roberto Gamito

17.05.24

Não desejaria a ninguém que fosse eu. Descansem, não me chamo Ismael, nem tão-pouco desbarato a vida a perseguir cetáceos albinos; o que de mais parecido tenho com o arpão é o lápis atrás da orelha. As ervas, segundo li nas notícias, tomaram conta dos jardins dos caminhos que bifurcam; o barão trepador, por virtude da escassez de árvores, foi pontapeado das copas por um macaco futebolista, treinado no circo e regressou sem pinga de bazófia ao solo, embora tenha experimentando a vida nos arbustos durante uns dias, não era a mesma coisa; o diabo abriu uma churrasqueira no nono círculo de Dante — e só lhe desejo sorte para esta nova empreitada e, como vivemos em pleno canto de cisne da fartura, Tântalo, finalmente, matou a fome e a sede — e isso só nos devia orgulhar. Fui morada de multidões de possibilidades e aos poucos, ignoro se por cansaço, se por sabedoria, se por passatempo, fui escorraçando-as, uma por uma, ou aos cachos, e hoje sobro eu, um eu sem penas, indigno de figurar num quadro. Um eu implume sem as próteses dos cenários hipotéticos. Despenteando o caminho que haviam traçado para mim com um pau treinado a escavacar pinhatas, preenchi a minha agenda com as tarefas mais inúteis que logrei lembrar-me, irritando os virtuosos dos horários que, em virtude da organização, despacham um ano de trabalho numa tarde. Não faço tenções de abandonar o dédalo, afeiçoei-me ao Minotauro, respeito o seu labor e com sorte ainda encontraremos a saída do labirinto na amizade. A minha biografia é contrabandeada a preço de saldo por amigos e vizinhos sempre que me afasto um pouco. À semelhança dos grilos, se me aproximo muito quando a orquestra das tangentes se abate sobre a minha vida, calam-se, mudam de música, sintonizam uma rádio que não passe fado. Não me faltam, por conseguinte, candidatos a biógrafos. Pauto-me pela discrição, dizem, pela celebração do insignificante, quer dizer, do risível, e pela miniaturização do mundo alheio. A cidade — e quem diz cidade, sonhos, qualquer empreendimento faraónico posto em palavras ou em acto pela ambição humana — é metamorfoseado numa maquete, uma versão de esferovite, reduzida ao mínimo, por assim dizer, terreno onde a hipérbole não medra. Por muito adubo que a publicidade ponha na discussão não logrará desmentir-me, eis uma certeza. Cultivava distância como quem cultiva tomates, continuamente e sem alarido. Ridicularizo alianças, amizades, simbioses; as uniões, para mim, são salas de espera onde os traidores alinhavavam planos magistrais. Ou, se preferirem, a aliança é um viveiro de regicidas.
A burocratização do amor causa-lhe asco. Afastou-se das pessoas quando se deu conta que ninguém entendia amor-próprio como oxímoro. Partilhava com os sábios que habitam os cumes dos livros, os do mundo real não faço ideia, a repugnância pelo conceito de grandeza.

A nossa personagem — esta é uma versão em torno da qual o debate continua aceso — fugiu de casa de madrugada e deixou, na cama, o seu nome entregue às traças. Desembaraçou-se dele e passou a ser oficialmente anónimo, assim em minúsculas de molde a não criar inimigos. O anónimo anda na rua como quem se dirige para o cadafalso. Sem os arabescos da pose, uma coreografia esculpida a suspiros que se afigura perfeita aos olhos de um público ávido de verificar se a gravidade ainda funciona para aqueles lados, se é neutra como tanto asseveram, ou se, pelo contrário, não desperdiça uma oportunidade para despachar mais um homem. As partes seleccionadas, as que compõem este relato destrambelhado, as quais oscilam entre testumunhos, primeira e terceira pessoa, versões oficiais (duvido!), oficiosas, apontamentos laterais, notas de rodapé tentam pôr de pé o edifício de uma existência que se votou ao apagamento. Nada do que fez, segundo se sabe, foi feito para ficar. Não havia nele, segundo ex-amigos, a menor pinga de angústia. A mortalidade assustava-o tanto como um gato preto num esquina mal-iluminada. Obriga-nos ao salto e é só — não ficamos nem mais nem menos traumatizados. Respirava baixinho, como uma pedra, como se temesse estorvar o pensamento alheio com dióxido de carbono ou oxigénio mais ruidoso. Racionava oxigénio, esse era o seu legado para as gerações futuras. Perto dele, os nudistas sentiam-se encasacados, uma fraude. Tudo nele celebrava o despojamento. Dos actos, aos gestos, passando pelas palavras, não havia nele o abismo entre a acção e palavra. A palavra era a legenda perfeita do acto e vice-versa, e isso levava às lágrimas até o mais marmóreo filósofo. Quem quisesse aprender teria aprendido com ele o encanto das pequenas coisas, da possibilidade efervescente todavia sem discípulos, descortinando nos passos dele a biblioteca do fracasso, as hipóteses quebradas que elevavam o falhado a faquir. Habitamos uma terra de cinzas. O papa, num dos seus encontros com o anónimo, exumou do olhar do homem-sem-nome um rosário de amadas, um não sei quê de infância e, caso não tivesse virado costas à psicanálise, teria encontrado uma explicação à altura do mistério.

De facto, há críticos que sustentam que, sob o jogo de luzes deste homem sintético, casa de espelhos onde desdobramos o homem contemporâneo, debaixo do verniz enternecedor de uma solidão que só nos livros singra, se esconde, nos bastidores destes linhas, o narrador a apoucar a toque de porrada a hipocrisia vigente. Qual cobra no meio dos pedregulhos, a biografia do autor assoma-se, dotando de cabecinha os interstícios, no testemunho. Escorraçado da guilda dos apóstolos da recusa, à cabeça, Bartebly, quer infiltrar-se, dê por onde der, no clube dos resistentes.

Um zero tão à esquerda que Deus foi obrigado a repensar a sua definição de nada. O que mais desejava era ser esquecido, qual animal recém-falecido na savana. A fome ou o cartucho como ponto final. Tinha a consciência que havia indivíduos que mais pareciam furgonetas apinhadas de nomes de mortos. Se ao morrer fôssemos esquecidos sem adendas nem direito a notas de rodapé, nesse dia acabaria o mal no mundo, a psicologia e o Céu.

Falamos como se as palavras não evaporassem. Ao continuar, vamos improvisando pés-de-cabra na prisão do narcisismo. Nada disto interessa. Tanto as aves como as coisas mais depenadas, as mais engraçadas e as mais ásperas têm para o tempo (aquele que passeia os dentes sobre a nossa pele e ensaia o nosso fim de molde a não falhar nada aquando da estreia da peça) o mesmo valor. Abate-se sobre tudo, ser vivo e inanimado, com o mesmo vigor. Qual marreta embriagada pelo sangue, não descansa enquanto não escaqueirar e de nós não restar uma vasta paisagem de cacos e estaturas arruinadas. Diante do tempo, tudo é ridiculamente provisório. Ninguém vai ficar cá para acabar a história. As cigarras cantam, afiançam os cientistas, ao passo que o leigo, sem talento para fazer amigos, responde: as cigarras produzem ruído. Onde está a verdade? Em quem estuda ou em quem anda no meio das cigarras? Há que ter o ouvido imparcial para responder à altura. O taberneiro, ao ouvir esta última parte, disse: Sim senhor, ainda hoje é segunda-feira e já me roubaram o ânimo. Começa bem a semana.

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Roberto Gamito

02.05.24

Novo episódio do podcast Tertúlia de Mentirosos. 

Ricardo Araújo Pereira.

O ponto de partida para esta conversa foram os livros Coisa Que Não Edifica Nem Destrói e A Doença, o Sofrimento e a Morte entram num Bar - Uma Espécie de Manual de Escrita Humorística, ambos escritos pelo RAP.

 

Deambulámos por uma enormidade de temas, a saber:

Teorias sobre o riso - Incongruência e superioridade, As piadas são à custa de quem?, Cães à antiga e cães vestidos, Superioridade forjada, “A melhor decisão que já tomei, Glossário de palavras que nas redes sociais significam uma coisa e fora das redes sociais significam outra, “Humorista” e “piada”, Filme The Social Network; Seguidores, redes sociais e sede de sangue subtil; Swift e Jimmy Carr, Nós deixámos de perceber que uma piada é uma piada?, Aversão ao cerebral, Expressão “consumir comédia”, A autenticidade autêntica e autenticidade pechisbeque, Evolução de um bit do Dave Chappelle, Isto é Gozar com Quem Trabalha, Benefício de Dar Peidos de Swift e o prestígio do tema, Filme Patterson (1), O que podemos esperar de uma piada, Para que serve a coisa X, Prestígio da eficácia, “Eu não gosto muito do programa, aquilo é só para fazer rir”, “A verdade foi privatizada”, A grande obsessão humorística da Joana Marques é a vaidade", A ideia segundo a qual a comédia é ferir, Brincadeiras à volta do mito de Narciso, Episódio do fascinante podcast “Coisa Que Não Edifica Nem Destrói” - Afinidades entre Comédia e Pugilismo, “O soco é muito pedagógico”, Kickboxing e confiança, O combate e as indicações dos treinadores, A palavra ‘delirar’,  ‘músculo’ e ‘alarme’, (O livro de moscas sobre o qual o RAP fala sempre em tom elogioso será brevemente editado), Piquenique e moscas, O humorista é um activista anti-pompa, Questionários de Verão, Preguiça e rancor, Conhece-te a ti mesmo é uma paródia de Dioniso?, Eufemismos e novas formulações para dizer as coisas de sempre; A comédia é concisão? Exemplo contrário; O valor da repetição na comédia, Jacques, o Fatalista de Denis Diderot, Mil e Uma Noites e Xerazade, Recomendações de livros - Era Bom que Trocássemos umas Ideias sobre o Assunto de Mário de Carvalho, Os Cadernos de Pickwick de Charles Dickens, O episódio das cerejas do Mixórdia de Temáticas, Dois totós a falar parvamente sobre livros de humor pouco conhecidos e/ou esgotados. 

Ouvir episódio aqui:

(1) Poemas Escolhidos de RON PADGETT, Assírio & Alvim 




Roberto Gamito

20.04.24

Quando éramos homens, e havia algum prestígio em permanecer vertical, os predadores, sejam eles de nomeada, com obra feita ou aspirantes a tal, ou perdedores, como dizem os disléxicos activistas, e as presas amiúde geradas pela fome do outro, ninguém estranhava o seu lugar na cadeia alimentar, o mais antigo labirinto sem esquecer o talhante de bata ensanguentada, quando a sobrevivência era clara e não um poema de quem tranca uma vida lá dentro, antes de o advogado tomar o lugar do fabulista no lugar de intérprete de animais, numa altura em que os pais abandonavam os filhos na floresta com o fito de engordar as bruxas e os trilhos de pão eram recebidos pela fome de aves e bichos menores, o mundo, nem por isso, era muito diferente do nosso. 

Vivemos em plena era onde o conforto migrou para todos os vértices e arestas cortantes. A título de exemplo, a literatura, antigo pugilismo solitário, ringue onde o leitor se agredia com golpes remotos de malucos generosos, os quais queriam, acima de tudo, o nosso bem, metamorfoseou-se num spa no qual o leitor, espremido qual laranja algarvia, se espoja entoando o refrão do ego. Durante um ritual mais ou menos sofisticado de afagamento, depende das eras, depende dos preços, o leitor é bombardeado com elogios que, de outra forma, não os receberia. Eis o abismo, o mundo não está para nós, e a arte — não haja receio de usar aspas — fala para nós como se fosse uma mãe protetora, capaz de ir, vejam bem até onde vai a ternura do capitalismo, ao limite de entender o nosso dialecto de soluços e ranho. Posto isto, dada a ração semanal de literatura carregada de verbos engessados, de adjectivação mansa, não é de estranhar que eu seja incapaz de destrinçar a barata tonta da barata sensata. Interpreto a rapidez da barata quando se cruza com o humano tal como quando o adolescente levado em ombros pelas hormonas é apanhado pelos pais que juraram chegar tarde e, ao ouvir uma porta aberta que não estava nos planos, num instante se adapta favoravelmente, mantendo, por ora, o cadastro limpo. Nunca conheci uma barata tonta, a barata sabe sempre ser barata, seja aqui ou ao rés de um cogumelo radioactivo. Há um homem nas redondezas, é para fugir — parece-me sensato. 

Os cães começam a ladrar, incentivando outros a fazer o mesmo, e desse modo cria-se uma rede de latidos que cresce enquanto houver cães disponíveis para a chinfrineira. A vila, que dava ares de civilizada, com um pé neste século e outro no futuro, supondo que chega cá inteiro, não nos fiemos nas empresas de entregas, gradualmente foi despertada, casa a casa, para um coro de animalidade. Em fechando os olhos, diríamos que a vila retrocedeu até ao estado de selva. Partindo do princípio que houve um motivo para os primeiros cães começarem a ladrar, não é de descartar a hipótese segundo a qual os primeiros cães continuem a ladrar só porque há outros cães a ladrar. Ladramos porque outros ladram, e é tudo.
E eis que fui conduzido pelo pensamento rumo à crítica literária. Uma rede de críticos que se criticam mutuamente, sendo que o primeiro, alegremente, criticou um livro provocando uma avalanche de críticas. Não obstante a beleza da tempestade, o leitor do dito livro que originou esta pugna verbal, dá-se conta que andam a usar o mesmo punhado de citações pilhado a um crítico primevo e ninguém foi à fonte verificar se havia minério ou ouropel. Ladram porque outros ladram, e é só. 

E eis que entro numa casa de banho pública, nas paredes da qual foi sendo coligido, sem agenda, um enorme cadáver esquisito. Surrealistas de bexiga aflita. Eis algumas das pepitas. 
A castidade não valoriza o pénis, pelo que não posso considerar o homem enquanto objecto. A democracia é a arte de cortar irmãmente o bolo até ao átomo e bramir ‘já vos matei a fome’. Somos animais sociais, expressão a necessitar de uns retoques, no entanto, grande parte das cenas de pancadaria nascem num ambiente de convívio, logo não contem comigo para festas. Se as mulheres pararem de me ignorar, paro com os poemas — ganhamos todos. Não tenho penteado para ter inimigos. O Júlio tem tanto carisma que até os peidos são citáveis. Há anos que ando a matar perdizes com os mesmos cartuchos. Esta última tem-me tirado o sono, confesso. 

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Roberto Gamito

20.04.24

Deitados, como se o mundo não lhes interessasse, à procura de posição, fazendo tangram com os ossos, ensaiando inconscientemente as poses uma e outra vez documentadas e que tantas alegrias dão aos homens de pau solitário, encimando a toalha axadrezada de piquenique com corpos disponíveis para o plano inclinado da mentira, como manda a lei dos piqueniques, rodeados de pitéu caseiro, preludiando sem verbos a mais a cena de sexo silvestre como vem nos livros, principiou-se a falar da singularidade da bifana enquanto a mão do homem ia cartografando a febra, rodeados por um nevoeiro de moscas que, aos poucos, se densificava, as principais fiscais da paixão campestre (1), as quais, exegetas vanguardistas, interpretam a toalha de cima como se fosse o retrato de Belzebu. Não obstante o rei estar afogado há muito no mar de intenções da rainha, o tempo passava devagar como se tivesse apostado em nós.

É, convenhamos, tempo de acabarmos, cuspiu ela sem peias da sua boquinha ontem entregue à trombose do orgasmo, a qual, no prefácio da paixão, foi hábil em burocracia ebuliente, a grande sala de espera onde alinhamos, por ordem crescente de fome, uma alcateia de desejos, não ignorando que é apenas uma questão de tempo até sermos atendidos e nos despedirmos do verniz da sofisticação, desmantelando, assim, esse oxímoro com o dinamite do tesão. Mostrou assim dominar o timing da comédia humana. Bebi um café e veio-me à cachola Balzac.
Minutos antes de ser alvo de tão inesperado rosário de palavras, simultaneamente vulgar, já o havia visto um sem-número de vezes nos filmes, via-o de fora, a rir acriançadamente, do ridículo que é darmo-nos conta de uma marreta a tombar do céu com intenções de legar ao chão uma aldeia de estilhaços; todavia, empreendia, qual Ulisses pacifista sem memória para coligir os pretendentes nos arquivos da cólera, uma odisseia de planos para os próximos 500 anos porque, segundo li em certos sonetos, ciência das boas quando o assunto é a aliança de carnes, dado que somente no exagero a carne e a palavra formam aliança, era para sempre. Em dias de menor comedimento, vinha-me à ideia que o universo continuava a expandir-se no sentido de acomodar o que sentia por ela. Que armazém de expectativas goradas tinha agora em mãos para despachar. Negócio a explorar: comércio de expectativas em segunda mão para quem, destituído de miolo, é incapaz de sintonizar o coração na frequência do infinito. No parecer de certos entendidos, gente que a memória logo esculpe até ao pó, do pó ao pó é um longo calvário do caruncho!, o artista é, afiançam esses cultores de entrelinhas, quem se dá conta da luta entre o infinitesimal e o infinito. O muito pequeno põe-se muito direito, adquire uma monumental poupa, enxerta nele metros postiços e vê-se ao espelho como gigante genuíno sobre os ombros de um ego recém-calibrado pela situação aflitiva.

Sempre que alguém se dedicou a biografar a vida dos comediantes, coisa que acontece com muito menos frequência do que deveria, quer dizer, se descartarmos as películas com ares de documentário cujo fito é enobrecer o palhaço que está em vias de se extinguir, logo ele que não passa de uma coleção de balas perdidas, somos colonizados pela ideia de um Cristo assustadiço que saiu da cruz com intenção de trocar os pregos antigos por novos, regressando na mesma noite, não vá a metáfora afrouxar.
A morte. Uma última pausa após a qual não se seguirá punchline.

“É, convenhamos, tempo de acabarmos.” Recebi a notícia como um estalo no coração. Mesmo aí, no ponto final posto por extenso, partilhámos as contas. Ela disparou as palavras eu fiquei com o coice — e recuei destrambelhadamente até à infância, ultrapassando, primeiro, o labirinto das relações falhadas. Às arrecuas até ao início, sem precisar de terapeuta.
Eu que me afeiçoei à farpela de ser Ninguém, ela, entomologista, amante do insignificante, viu-me, percebo agora, como insecto exótico. Houve um erro de paralaxe que me passou ao lado. Para mim, o sonho, para ela, mais um trabalho. Acabar comigo era o equivalente a alfinetar-me num quadro de cortiça e dispor-me friamente ao lado do escaravelho mais parecido comigo. Com efeito, desembaracei-me da pele humana, em tempos um dragão chinês debaixo do qual se acoitava uma legião de possibilidades, e fui despromovido a escaravelho-bosteiro, com sorte uma espécie única, hábil em brilhar no escuro. Um bolinha de merda perfeitamente esférica transportada até à amada, caminho prenhe de perigos, predadores e até brisas. Uma e outra vez, um exemplo de combatividade. Infelizmente, carecemos de um Homero capaz de pôr isto em Epopeia. E isto tudo a fazer o pino, como se não houvesse outra forma de transportar excrementos esféricos — o único globo que faz jus ao mundo dos homens. Analisando friamente, agora que as palavras a cavalo nos sentimentos iniciam o arrefecimento, aos poucos, a pertencer ao território dos fantasmas, e a distância que nos unia uma assimptota. Feita as continhas no guardanapo de taberna, ignoro se fiquei a perder. Ser humano, segundo se conta, embora haja teses contrárias, contém aspectos positivos capazes de erigir seitas à volta de duas ou três patranhas. Um escaravelho-bosteiro, arrisco, é um parente de Sísifo com a ligeira diferença que, embora o deserto se afigure como um inferno em obras, alcança a amada. Desafortunadamente, desconhecem-se testemunhos de escaravelhos fêmea após receber tão delicado presente. Há ali muito trabalho envolvido. A esfera, como disse Platão, é a perfeição, e por consequência, a imagem de Deus. O escaravelho, que só se deixou ludibriar pelos egípcios, não estabelece, que se saiba, ligações com Deus. E no entanto ela move-se. Para ti, a perfeição, o retrato de Deus, a mais bela das merdas. A perfeição esculpida na merda. A comédia é própria do homem. E, faça-se justiça, do escaravelho-bosteiro.

(1)
A mosca é uma empata-beijos e, no limite, caso o lume gerado pela fricção das carnes seja brando e insuficiente para as incendiar ou electrocutar, uma empata-fodas. A mosca é tipo irmã conservadora que fiscaliza as pernas da irmã mais nova a fim de controlar as entradas e saídas de estranhos. A mosca é puritana.
Não me espantaria se houvesse estatísticas nas quais se percebesse a importância da mosca e o impacto negativo sobre a natalidade em Portugal. Se não há condições para a prática da fornicação, o chamado sexo, caso analisem estes temas de óculos de massa e bata branca, haverá menos oportunidades para expedir bebés para o mundo. A minha tese é que existe uma mosca batedora que, assim que avista um casal, vai comunicar às outras que andam pelo campo a debicar excrementos. Hoje temos gastronomia portuguesa. Não é preciso ser grande crítico gastronómico para entender o entusiasmo da mosca. Mesmo um palato analfabeto reconhece a superioridade do presunto face ao excremento.
Apesar de ser proverbial o seu apetite por cocó, aí parente do humorista em noites de aflição, e por matéria morta, a saber: cadáveres e pessoas tomadas pela depressão, as moscas não recusam comida caseira. Tal como as hienas, reconhecidas no meio animal e académico por serem necrófragas, não dizem que não se lhes calhar na rifa uma carcaça fresca. E aqui somos todos irmãos.

 

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Roberto Gamito

14.04.24

Furriel, escuta-me: há dias, após comer gulosamente cabidela de diamantes de sangue numa correria de colheradas, prato típico de déspota milionário, perdoem-me a redundância, a referência e a enumeração fora da época de inventários, vagabundeava com vontade todavia sem genica pela rua dos meus últimos dias com a pança a saltitar de pitéu devorado e dei-me conta de um detalhe deveras revelador. As poucas sombras de árvore que ainda restam haviam sido ocupadas por veículos, carros, carripanas, motas e quadrúpedes de chapa não identificados, estes repousavam quais felinos exaustos, como que posfaciando uma caçada com bocejos, bosquejos de proezas e flatulências, enquanto os homens, o zénite da criação, suavam quais figos a secar ao sol, como se a água fosse um estorvo.  

Principiei a asnear, que é como quem diz, de mim brotou uma catarata de obscenidades, hábil em polinizar os ouvidos mais sensíveis com uma irritação fresca, não lhe faltando nutrientes — só quero o vosso bem. 

Massa cinzenta, queimadinhos, o arroz e o miolo, jantar de zombie feito em fanicos. Ando de um lado para o outro com as cinzas de Deus nos cornos, ele por fim minúsculo que está dentro de nós e por momentos morto. Perante isto, a notícia de mais uma morte inesperada, só logrei pensar em foder e em Dostoiévski. Amanhã pode não ser permitido, há que voltar aos clássicos. 

Na vinheta seguinte, o nosso personagem anónimo prosseguia a sua ruminação, no entanto fora-lhe adicionada uma mulher de joelhos ao rés da braguilha. Enxotou-a sem pinga de delicadeza. Coitada, a pobre só tencionava acoitar-se à sombra dos tomates do velho e, quem sabe, dar largas ao apetite sem que o sol convocasse a madurez para a sua pele. 

Há vinte anos, na rua agora semeada de lojas tão diferentes no nome e no conceito mas tão iguais no conteúdo, havia tão-somente dois tipos de negócio: tabernas e mercearias. Embora o sortido de bebedeiras tenha migrado do passado rumo ao presente, não é, convenhamos, o mesmo cenário. Não tem o mesmo sabor apresentar uma cadeira ressequida do sol às costas de um cavalheiro que ficou à mercê da nossa fúria ou repetir o mesmo gesto mas com uma cadeira da moda. Dá a ideia que até a porrada nas esplanadas é espectáculo virado para os turistas. 

Queira facultar-me prazer e o bom do broche, e se possível em simultâneo, e para ontem, puta! Só se deres uma aparadela no mato. Não estamos em época de incêndios, quando for a altura, falo ei! Até lá regalar-me-ei com este chumaço natural que volta e meia engoda peixe mais necessitado à procura de farnel. Escusavam de teimar com ele, falava assim com todos. Mesclava ordenamento do território e brejeirice com mestria digna de mestre, fora, sem sombra de dúvidas, bafejado pelas musas. Era o cronista do seu apetite e isso fê-lo ganhar muitos inimigos e amantes e biografias não autorizadas.

Há anos, era eu puto a prestigiar a cara com ranho e borbulhas, atirava pedras às lagartixas só para ouvir o farfalhar das folhas secas à minha volta. Apontava à cabeça de uma, e merda!: fugia aquela e fugiam outras sete. Por incrível que pudesse afigurar-se, a tarefa de encontrar vida debaixo da pedra que encrencou Abel, revelava-se esquiva. Qualquer outra pedra oferecia na sua cave um hotel destinado a bichos e bichinhos. Só este pedregulho bíblico permanecia como excepção. 

 

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Roberto Gamito

13.04.24

Esse festival pirotécnico de parangonas com que nos entopem os sentidos e nos atravancam a alma com grilhões é um chorrilho de arrotos afinados pela novidade mais fresca, que ao ouvido mais destreinado passa por sinfonia. A manipulação a que estão sujeitas as multidões põe a marioneta em perspectiva, confere-lhe tridimensionalidade, adiciona-lhe chapéu e futuro, ao passo que nós, tão desgraçados quanto alienados, embarcámos numa viagem inspirada em Flatland. Quanto menos dimensões tiver, menos problemas arranjo, há-de congeminar um matemático virado para a ardósia a mando de uma faca de dimensões e gume respeitáveis. A marionete regozija-se pelo seu destino — o primeiro pensamento assim que a fada lhe confere vida e número de contribuinte.

E eu? Na altura, inferior a todos eles, fui ganhando corpulência e testículos à Rabelais, os quais saltaram marotamente de geração em geração, qual tesouro de família, tipo Santo Graal do baixo ventre, rapinando centímetros e coragem a esses poeirentos cadáveres encalhados nas estantes, inspirei-me, não minto, em patilhas célebres e barbas com obra feita. À conta de leituras metamorfoseei-me num cachalote pitosga e camaleónico, nem negro nem branco, confundo-me com águas e marés com o intuito de me aproximar desse enxame de Ahabs gagos de arpão reformado. Daí para a frente é sem mestre, cornos nos cornos com a morte. Posso finalmente desarrolhar o demónio que há dentro do homem. Hoje ninguém dorme, é dia de festa, o Diabo olhou, novamente, para o céu.

A minha luta, sei-o, é contra o tempo. Doravante é um contra-relógio, licra da cabeça aos pés e cores berrantes que não me favorecem seja qual for o ângulo ou o fotógrafo, e vá de dar ao pedal. Pedalo logo suo. Existir fica para depois. Em face do vasto catálogo farfalhante de bichos, no qual as espécies se encavalitam umas nas outras no mesmo ruído, quer dizer, acotovelam-se com a ideia de entrarem no círculo franzino onde o holofote separa, de longe, o trigo do joio, ou, se preferirem, como se o jogo da reputação fosse uma partida de sumo, estamos todos gordos e em trajes menores;  em todo o caso, quem permanece no círculo está em jogo; fora isso, ainda há, ouvi de fonte precariamente segura no entanto subornável, gente a merecer um elogio ou outro. Avancemos com calminha, a senda até ao próximo raciocínio está pejada de buracos e buraquinhos. Ali vai uma gaja que merecia estar comigo, comenta o macho em idade de acasalar — e isto não é de somenos. Confiscando os voos do ego para divãs que valorizam à medida que coleccionam rabos desejosos de desabafar, anos a fio no funambulismo da adolescência, anos à pendura no carrossel da morte, mas sim, os voos, ao relegá-los para a frieza das fórmulas físicas, como quem chama a genialidade ao gabinete da eficácia com o fito de a abençoar com um sermão antes de a despedir. Encasulados no cacho de âmbar da previsibilidade, a enceleirar raiva dentro de pipas de carvalho, a fazer tempo para a mudança — e reparem que os séculos passam num foguete, Camões que era Camões falava de um Portugal com os vícios de hoje, meus queridos Velhos do Restelo em regime pós-laboral.

A fórmula arruma tudo: quando descortinarem a minha posição inicial — o inferno, o inferno! — e a minha aceleração — luciferina, não há outra — hão-de ir ao tapete e se for preciso até ajudam o árbitro na contagem. Hão-de aproveitar o último fôlego para a epifania de vão de escada. O humanismo é uma coisa maravilhosa, mas como mercadoria.

Não há por aí ninguém para me despentear as convicções políticas, pergunta a mulher no bar num tom que, se os tempos fossem outros, diríamos carregadamente sexual. Já ninguém me arrepia com parágrafos, os quais tombam sem agenda do céu tipo caca de pombo e ali ficam à espera que a burocracia das freguesias desatravanque o caminho da ideia de limpeza para a limpeza propriamente dita; esses filhos da puta — calma, não é daí que nascem as dificuldades e as diferenças entre nós — desembarcam à minha beira com o seu refrão de época alta com a gangrena de quem romantizou a inércia e a elevou a musa só para ter uma desculpa de atar as mãos. É o costume. Entretém de pila murcha. Na versão fílmica, haverá uns tipos a quem o declive vai beliscando a frágil verticalidade até que, esgotadas as forças, as quais foram desbaratadas em punhetas líricas ou alheias com o fito de subirem na hierarquia onde só os sopés são palpáveis, encetam a queda com a lágrima no canto do olho. Pensamento novo. Não é a descoberta da pólvora, mas anda lá perto. Mas filho, cogitará o leitor ajeitando os óculos e os colhões de forma síncrona, para quê estes coices metidos a despropósito? Meu puto, estás tão a leste das quezílias, o verniz da tua pretensa sofisticação ingressou em ti como ácido, a princípio educadamente, e está a minutos de chegar aos ossos. A tua propensão para imitares os quadrúpedes quando a política te bate à porta tinha de ter uma razão que não psicanalítica. Está bem que nos fodem, à grande e à estrangeira, mas foste tu, não foi a tua mãe nem Laio, que permitiu que o verniz assentasse arraiais no esqueleto e ganhasse confiança até se tranfigurar num vampiro.

Outro personagem. Tratam-no alternadamente como génio e erro conforme tocam os reclames. Linhas — isso vi eu com olhos incorruptíveis — de pura genuinidade da candonga, elevada a hino. Os aplausos ante tamanha farsa tiraram-me o sono durante décadas. As insónias ensinaram-me tudo o que havia a aprender: meti o bedelho como um felino ferra os dentes nas goelas da presa, eu que antes havia inventado acidentes para abrandar a locomotiva da fome.

Que campeões deste atletismo de aprumadinhos! Deleitados e tontos, medalhas e cérebros nas prateleiras dos troféus. Tantos gráficos e nenhum é capaz de mascarar o nosso desnorte. Tantos pódios atulhados de malta com vertigens.

Cada influencer está convencida — ou convencido, que os há também em formato macho — que dá guarida a uma dinastia na barriga. O puto é endeusado assim que é escorraçado da mãe — agora aguentem este festival de mimados.

Não me quero armar em juiz, estou nisto, na vida e no resto, com ganas de aprender e desaprender. Se possível, munido das palavras mais ígneas. Nada de descambar em projectos ambiciosos, pelo que não esperem destas unhas nenhuma catedral, o vosso Deus que durma na rua — daqui em diante é o evangelho da pólvora. Desapareçam-me da frente mais a vossa gangrena do positivismo.

Andas a catar de cadáveres alheios piolhos para assim teres pretexto para te coçar, dir-me-ão convencidos que o vosso cérebro quer alguma coisa convosco. São empreendimentos deste calibre que nos catapultam para uma antologia do disparate, destacadíssimos. Não retruco. Está certo, até deixar de estar.

Com ou sem bola, isolei-me com fintas de autor, visto que o esférico é artifício para evitarmos andarmos por aí aos tiros, não foi golo, mas. Um mas atestado de cólera. O meu propósito: um susto na grande área. Falho, todos falhamos, o que muda é o equipamento e o teor dos comentários dirigidos ao árbitro; e nada garante que para a próxima falhemos melhor. O susto não passou: cá estou eu na área, uma e outra vez, qual possesso suado e de calções cheios de terra.

Roubei-lhe tempo. Que estupidez, perdi o meu tempo e o dela. Somos larápios de tempo inexperientes. Envergonhe-se já o leitor, as banalidades, estas e outras, serão regadas a gasolina. Das mil, uma: uma horta de chamas e faúlhas — um milagre da sustentabilidade, só precisa ser regada uma vez.

Festival de parangonas


Roberto Gamito

07.04.24

Pedi com voz coxa, amparada pelas muletas tipo e imagina, fruto de lábia extenuada de andar a impingir isto e aquilo aos néscios, um café à homem contemporâneo, sem princípio. De uma penada confeccionei crítica social e parodiei Borges, o escritor argentino. Ainda não está suficientemente profundo, comentei ao fitar o café com as mãos de quem vai dar início ao mergulho. Das duas, uma: ou ganho uma medalha ou conduzem-me para o hospício, fosse como fosse, a parvoíce é olímpica.

Língua insubmissa, pese embora o corpo agrilhoado, vícios de quem ambiciona subir pela hierarquia acima, para desprestígio do cu ontem bem reputado, e o corpo é que paga!, manietado no colete-de-forças da eficiência — caiu-nos um problema (desafio, caso vos tenha calhado a fava de ‘empreendedor’) no colo. O problema órfão encontrou em mim um pai adoptivo, e assim se vê como anda o mundo das ideias. A empresa faliu por ser incapaz de oferecer morada a tanto desafio. Das cinzas desse negócio nasceu uma casa de criadores de conteúdo.

Com os joelhos a tremerem que nem varas ao serem coreografadas pelo vento, como que a prefaciar a grande conversa ou uma foda há muito desejada, o clima, ameno, não pedia preservativos nem gorros. Décadas a aturar manetas, a cuspir aos ouvidos dos apardalados o mesmo refrão capitalista para que me levem as bagatelas das prateleiras, anos a deixar-me ficar para trás nesta maratona a que uns, não sem vergonha, apodam progresso, um sem-número de restos de música que transbordavam dos bares, sítios onde vamos à noitinha prosseguir com as buscas, a felicidade que não há meio de aparecer, tudo isso fazia esquecer-me que a velhice — essa cabra multiforme que nos esculpe desfavoravelmente qual escultor sem talento, um escultor só Parkinson, recorda-me do que sei, que é como quem diz, o meu mundo cabe à larga num bolso. A vida é uma tragédia em plano inclinado, o potencial ficou lá atrás.

É agora, questionou a mulher de peito farto. Deixa-me só encostar o mundo às cordas, bramou o poeta armado em pugilista com os calções na mão, consente, filha, que despache o mundo numas linhas, que eu já te atendo.

Numa esquina dessa história cuja luz daria à cena, caso fosse fotografada, o estatuto de memorável, a velhota corcunda, tipo caracol com a mania da verticalidade, vistoriava a montra atulhada de bolos com paciência de relojoeiro. Não tenho tempo para nada, excepto para bolos, aí aprecio a ponderação, eis uma legenda para a cena a piscar o olho a Fernando Pessoa.
Um bolo de arroz e, sem transição, aquela “ainda agora se divorciou e já anda com outro.” Como se as mulheres fossem obrigadas a um período de pousio. Durante uma temporada não se plantarão nabos nessa cona, eis o que deveria vir no Borda d'Água. Deixa a mulher em paz, interrompi eu, agricultura é vida.

Era um homem a desnovelar os segredos do cosmos ao balcão entre berros, pancadas e perguntas. Pediu marisco ao taberneiro só para ter o gostinho de escutar um delicioso ‘vai para o caralho mais o teu gosto requintado’. Antes disso havia estado em casa a homenagear o compasso, a descrever círculos em todas as divisões, pi, pi, caralho, clamava quando cumpria a volta.

E a bifana vem ou não vem, perguntava alguém furibundo, há horas que ando a mobilar as tripas a cerveja e tu, tasqueiro só patilhas, não me desenrascas nada para entreter os dentes.

Outra velha que não a outra, esta segunda velha não parecia de porcelana, porém não estava viva. O cão empalhado exibia o seu melhor ar de desconfiado. A perdiz está amalhada. O restolho devolve-nos um som de cinema a cada passo. Não há lebres a acordar para o espanto de quem foi passear ao mato com o fito de espairecer e foi abalroado com o facto de o mundo, que não se importa com nada do que é humano, ter mais vida que um colhão no auge.

A fauna do sítio era vasta e merecedora de descrição mais avultada. Com o porquinho no colo, o pastor novo-rico dotado com tiques de celebridade de redes sociais trouxe o porco directamente da pocilga para a pastelaria e não admite crítica, vi lá fora, logo faço também, o bêbedo, o qual empestou a visão com vídeos de Instagram viu há dias uma dondoca a passear o seu piruças aprumado numa mala e, para fazer um brilharete, transporta o seu mini bobi desleixado cujo pêlo nunca conheceu escova num saco plástico grande e transparente como quem transporta um peixinho dourado para casa mas antes atesta a pança de bagaço. Patinhas a dar a dar, lindo, turistas, zero, o que era um descanso para a alma. Cafés e bolos a preço de local. De seguida, acordei e dei uma volta.

 

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Roberto Gamito

10.12.23

Tempos houve em que a criança da cidade, ao pronunciar-se acerca da proveniência do leite, respondia com a incompreendida deixa “vem da fábrica” e era prontamente alvo de um sem-fim de larachas e azedumes. Independentemente da corpulência ou da idade do catraio, a criatura em flor transformava-se num alvo indefeso dum circo apalhaçado, no qual o deboche vertiginoso dava mostras de incansabilidade.

O adulto, especializado em problemas desta estirpe, vinha em socorro da realidade e declarava: “o leite vem das tetas da vaca”. E mais: o adulto não se coibia de adornar a sua resposta com um acrescento já célebre: “actualmente, não sei o que é que as crianças aprendem na escola”. Não vou mentir, também eu, animal amigo da paz excepto nos dias de folga, engrossei o refrão da turba sem titubear. O adulto é um bicho que raramente perde a oportunidade de se mostrar superior aos demais. Mostrar-se conhecedor da origem do leite é uma oportunidade tão boa como outras, aliás, capaz de ombrear sem medos com outras questiúnculas, a saber, quem foi Newton e qual o seu legado, enfim, a altura ideal para exibir o crachá precário de homem inteligente. No entanto, o adulto pouco mais sabe sobre a jornada do leite que a sua origem. Sabe que o leite pinga da teta do bovino, sabe que sucedem vários processos de permeio, coisa que é incapaz de especificar sem se atrapalhar e sem fazer uma impecável figura de parvo, e sabe que essas gotas, mais tarde, hão-de parar no copo.
Aqui chegados, é preciso ter em conta que, se a criança não é grande espingarda em termos de raciocínio, o adulto, o qual, acreditando nos livros, também já foi criança, não é melhor, uma vez que já se esqueceu de tudo o que aprendeu em garoto. A criança pode não saber nada, no entanto, do outro lado da barricada, temos o adulto, alguém que salta de bitaite em bitaite, passando ao lado de qualquer coisa que se assemelhe à verdade.

Perante o perigo de perpetuar esta injustiça, tomei corajosamente a decisão de tirar as mãos da cabeça, que lá estavam com o fito de enfatizar o espanto, pô-las no bolso, para sublinhar que não há pressa, e encaminhá-las rumo à folha a fim de rabiscar o meu parecer de perito em assuntos aos quais ninguém parece passar cartão.

Dirijamo-nos ao fulcro da coisa: as crianças da cidade têm razão. O leite vem, actualmente, de fábricas. Quero pedir desculpa em nome de todos os adultos, comediantes, palhaços amadores e pessoas que se deixaram levar, qual cadáver sem personalidade, pela maré do escárnio. Se forem habitantes deste século, que nem é dos melhores em matéria de vistas, não vos terá passado despercebido o aparecimento de inéditas espécies de leite, nomeadamente leite de aveia e amêndoa.

Tal prova, ao contrário daquilo que inúmeros biólogos costumam dizer, gente que anda na ciência sem amor e com os olhos desfocados a pensar que o mundo é uma exposição de quadros abstratos, que os mamíferos ganharam. Dêem a coroa de todos os reinos, animal, vegetal, monera e restantes aos mamíferos. Já não constitui novidade para ninguém, os mamíferos ganharam uma reputação tal que até as amêndoas se alistaram no partido das mamas.
Como apreciador de mamas desde tenra idade, conhecedor da sua polivalência terapêutica, acolho com agrado o facto de as amêndoas terem feito implantes mamários; as mamas nunca são de mais. E, sem mais, o elogio pela delicadeza e a paciência de quem tem como ofício ordenhá-las.

Não obstante a satisfação que é verificar o avanço das mamas até sítios inesperados, urge lermos a situação à luz dos nossos dias. Será uma jogada de marketing ou o jugo do patriarcado a abater-se sobre as inocentes amêndoas que, a fim de continuarem relevantes nas redes sociais, precisam de arranjar mamas para exibir no Instagram e quejandos? Se for isso é triste, embora me faça rir. É o mundo que queremos deixar como herança aos nossos filhos? Um mundo que obriga a aveia, amêndoas e outras da mesma laia a tornarem-se mamíferos?
Como é que os vegetais e frutos que não aderiram à moda de virar mamífero reagem a esta situação? Tremo só de pensar na pressão a que devem estar sujeitas as novas amêndoas por parte das amêndoas mais conservadoras.
Enfim, só não fico mais doente porque bebo leite de vaca e este, felizmente, está pejado de antibióticos e medicamentos. Seja como for, os estúpidos putos da cidade estavam certos. O leite vem da fábrica. Foram, sem que o soubessem, profetas. Espero que um dia essas crianças, hoje talvez adultas (sei lá, há pessoas que se recusam a crescer), as quais, amarguradas e revoltadas, enveredaram pela via do crime ou do veganismo em virtude do trauma de terem sido tão violentamente gozadas. Desculpem, crianças, os adultos não sabem o que fazem.

 

(10 de Dezembro de 2019)

 

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Roberto Gamito

17.11.23

Não entendo o festival de parangonas à volta dos escândalos políticos: corromper e ser corrompido são actividades que merecem remuneração — é trabalho. 

Ao trocar o modesto Peugeot 106 — não confundir com o opulento Peugeot 106, o qual passa pelas lombas com o vagar de uma princesa — pelos altos voos da corrupção, tudo isso patrocinado pela TAP, e só nos orgulha, dá-nos a conhecer a propensão para o deslize da malta que decidiu enterrar o dinheiro no tuning. Em faltando os recursos vindos de mãos sujas no entanto generosas, contentam-se em fabricar um avião caseiro segundo os altos padrões estéticos da Joana Vasconcelos após uma noite mal dormida. 

Eu, que me sinto mais ignorado que um parecer de um biólogo em altura de escavacar zonas protegidas, sabia, à semelhança do MEC, que o tomate ia acabar. Entrementes, raciona-se ketchup mais à esquerda numa batalha de guiões de fraca qualidade. Ao esburacar a estrada para o futuro, o nosso ex-primeiro ministro revelou o seu lado budista, obrigando os portugueses a concentrarem-se no presente.

Portugal, que nunca foi grande, mergulhou, graças à incerteza política, no mundo quântico. Cada pigarrear é uma bola de pêlo figurada — uma homenagem ao Gato de Schrödinger. Em termos mais provincianos, o político podia socorrer-se de uma verdade absoluta. As coisas pioram com o tempo. A culpa é dele, do Tempo, que é um espatifador omnipresente. 

António Costa fala em abstracto, eu respondo triângulo, círculo, Rothko, Playstation. O que leva ao delírio virgens, gamers e espelhos. 

Pessoas saltam da piada para a ética e de seguida para o plano legal. Aplaudo: eis um belo exemplo de parkour intelectual. 

Empatia, vocábulo que é pau para toda a obra, esteja ela parada ou a correr pelos corredores da burocracia, tornou-se ubíqua. Segundo o entendimento de pessoas precipitadamente entendidas no assunto, pedir desculpa humaniza o homem e o político. Pela lógica, Nuno Markl seria o mais humano de nós todos. Raciocínio ousado. Invejo os politólogos: a sua ingenuidade sobreviveu aos estudos e à vida adulta. Se no caso do Wally o desafio é encontrá-lo, na empatia o desafio é precisamente o contrário. Ofereço um jantar se não a encontrarem no discurso político. 

Noutras coordenadas, que é como quem diz, nos arredores do nosso fado, o grupelho chegano foi brindado com pontapés, empurrões, água, sumos. Em Portugal, chama-se a isto protesto aceso, em África ajuda humanitária. Se houvesse serpentinas, estaríamos no Carnaval de Loulé. 

 

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