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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

26.12.20

O humor português é previsível, diz um vulto com ganas de sair do anonimato. Tal como a opinião do vulgo, é um sujeito — súmula de uma maralha nervosa e ressentida — que acerta ao calhas, se tanto. A inteligência é soterrada na frustração, pelo que ouvimos, saído desse maravilhoso entulho galopante, uma voz abafadiça que, se formos além da superfície, dirá: “ouçam-me, por favor, quero ser ouvido, sou o portador da verdade”. Numa assembleia de miolos temporariamente desactivados, a voz que se levanta desse coro assustadiço é a guilhotina romba posta em discurso. Abate-se sem apeadeiros numa queda lisonjeira uma e outra vez sobre o visado, mas não há forma de o rei se despedir de nós. Olha que há destinos, como vozearia a minha avó se fosse espectadora de tais espectáculos comicamente grotescos.

Não apanharei ninguém desprevenido se afirmar que o crítico aparvalhado terá, mais cedo que tarde, após colher a esmola volátil da aprovação nessa procissão de afónicos por momentos curados, uma prestação inferior à do alvo da crítica. O alvo da crítica terá roubado, reza a lenda, o lugar no pódio ao frustado. Adquirida a confiança para o desafiar, o frustrado cresce ficticiamente e tenta suplantá-lo com a sua navalhinha de brincar, afadigando-se em lutas de sofá e logo se dá conta do erro.
Descontadas as cantigas da empáfia entoadas pelo ressentimento, o atleta da indignação é tão-somente um medíocre consumado. Um génio sem obra que, ao mínimo verso escrito, revela aos outros o embusteiro que é.

Na sua cabeça, o desenvolvimento seria outro, porém a realidade teima em não cooperar com a nossa maré de alucinações. Pretendia, qual Barão Trepador de Italo Calvino, ir de árvore em árvore propagar a evangelho da altura, todavia não vai além do rés-do-chão do intelecto humano. A indignação, se posta em prática na arena onde os Homens se desentendem perfeitissimamente, é um movimento de dá e tira e modifica as coisas cá e lá sem nos pedir licença. Sujeitar os estilhaços esparsos de uma vida entregue aos cães à camisa-de-forças da fúria é um trabalho que não pode ser deixado a meio, sob pena de, findo o ritual de estrebuchamento, descermos ainda mais na consideração da turba. O palerma recorda-se daquele que é, evapora-se-lhe a intrepidez e inicia a queda a meio do voo. Curioso, se lhe dermos tempo, o arauto de todos os lumes, de todas as modernidades, é tão-somente um estafeta do eco com a mania das grandezas.

Na mundivisão deste vate, ele é, sem sombra de dúvidas, a voz da mudança. Surpreendentemente, pelo menos para fins humorísticos, o frustrado ignora que está a ser um joguete nas mãos da cólera mansa. Não diz nada que não tenha sido já dito. A fronteira ténue entre contrários é posta a nu, a dificuldade em destrinçar o bom do mau, o miopia em distinguir o virtuoso do vil. Resumindo e baralhando, mais um cego a ensinar-nos como se vê.

O canto acéfalo que nos ensurdece presentemente, o hino do império dos medíocres, celebrizado uma e outra vez por pensadores e filósofos. O círculo celebratório onde, quotidianamente, se benzem palermas com obra consumada. Talvez acarrete um preço demasiado alto a pagar — Jorge Sena é o exemplo máximo —, mas é preciso que surja alguém disposto a expor as maquinações dos frustados.

Enfarpelando os versos de Sá de Miranda com outra luz,
o pai do Velho do Restelo, podíamos sussurrar-lhes ao mesmo tempo que profetizamos a desgraça que caberá a quem ousar desafiar a turba:

Falemos com os cumes
caindo pelos precipícios.

 

Humor Português, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

12.12.20

O padre é, sem sombra de dúvidas, a melhor profissão do mundo. Ao contrário de um trabalho dito normal, no qual nos pedem para vergar a mola, é preciso levar a cabo uma coisa mesmo marada para se ser despedido. Na conjectura actual, temos emprego hoje e amanhã estamos na rua. A vida eclesiástica, por outro lado, parece-me prometedora para quem quer ter um emprego para toda a vida, coisa raríssima nos dias que correm. Não entendo por que razão os pais, os quais dão tanto valor à estabilidade emocional e económica dos filhos, não os aconselham mais nesse sentido.

Outra: nunca vêem o patrão — e o que isso implica, a saber: discussões, reuniões e discursos intermináveis sobre coisa nenhuma —, e, crescidos como são, excelsos leitores de linhas bonitas, não ignoram a alegria que é laborar nessas condições. Amiúde o patrão surge como uma figura geradora de atrito e gravidade. Espanta-me como é que nunca apanhei um padre a levitar.

O comum dos mortais, nos quais me incluo a contragosto, experiencia o que é ser padre, no máximo, uma vez por semana. Mesmo que quiséssemos, nunca conseguiríamos mentir sobre quão bela é a experiência de labutar na ausência de chefia. É como se nos fosse dada uma carta de alforria provisória. Andamos soltinhos pelos corredores como se fôssemos artistas de uma companhia de bailado. Até dá gosto ver.

O padre vive essa experiência continuamente. Trabalhar, na óptica do padre, é uma experiência enriquecedora e serena. Assim é fácil fazer a apologia do sofrimento quando se tem um trabalho que é um luxo.

Se Deus é Senhor, o padre é uma espécie de mordomo que nunca necessita de se preocupar com os caprichos do patrão. Faz festas — ainda que de duvidosa qualidade, sejamos sérios, a igreja, casa de Deus, podia ser usada para banquetes e festividades mais emocionantes —, e, para não parecer tão mal, fala do patrão garantindo aos convivas que Deus é sinónimo de amor. De vez em quando, pega na Bíblia, um género de calhamaço cheio de recados, e lê uma passagem ao calhas. É um ritual respeitável de molde a não se sentir tão culpado pela vida que granjeou.

Além disso, como se estas vantagens não fossem já numerosas e aliciantes, bebe vinho e come durante o trabalho. Quem, à excepção de um barman, se pode gabar do mesmo?
E aí reside a falsidade. O padre faz a apologia de uma vida regrada quando, diante do rebanho, leva uma vida de luxo.

 

Padre, a melhor profissão do mundo - Roberto Gamito

 

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