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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

10.12.21

É aceitável dizer-se: consigo ouvir os meus pensamentos, todavia são-me parcialmente inacessíveis. Sou incapaz de os traduzir, de os trazer para o mundo das palavras, porque não sou fluente na sua língua.
Há a possibilidade de os traduzir, porém não é isento de perigos. A minha ocupação, diríamos, é desfigurar o menos possível os meus pensamentos — operação delicada, acrescentaríamos.

Domino-me interiormente quanto mais hábil for a traduzir o mundo interior numa língua ao alcance de todos. Em redor deste ponto, surge a imaginação. Trata-se, com efeito, de formular aqui alguns passos extra. Não contente com a coreografia do pensamento, a imaginação tenta o salto imprevisto.

Dentro de nós, o tigre rodeando pilhas de cabeças de deuses antigos, árvores onde as folhas foram substituídas por penas, insectos do tamanho de galinhas, algumas leis da física suspensas. Cá fora, o homem a olhar, pensa-se, para o vazio.
O conflito entre o mundo exterior e o mundo interior é notório.

Cada migalha é a semente de um mundo ulterior. Não há terrenos estéreis quando a imaginação se apossa deles, o que há é Homens apressados. Do pormenor nasce o gigante.

Estamos vivos ou mortos?, eis o que preocupa o Homem mais desocupado. E se estivermos vivos e mortos ao mesmo tempo? Pegando com pinças na frase de Rilke, “Antigamente sabia-se(…) que se trazia a morte dentro de si; como o fruto o caroço.”
Assim sendo, o Homem não passa de um ataúde nómada, que procura avidamente o melhor sítio para depositar o caroço. Ninguém foge à morte, Ela, ao contrário de Deus, está dentro de nós. A morte é a possibilidade de um recomeço.

Relaciono-me melhor com o mundo quanto mais competente for a aprofundar a minha relação com a morte.
Não me ocupo de mim, diria o homem sem ego, ocupo-me da minha morte. A vida enquanto um ritual funéreo, excessivamente barroco, diga-se. O discurso humano como uma longa perífrase para diluir a morte.

Regressemos mais lúcidos à imaginação. Sei ver, mas também sei viajar a partir do que vejo. Começo nas letras e acabo na carne, diria o poeta a um palmo dos lábios da sua amada.

 

Morte e Imaginação, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

14.11.21

Já não me recordo como cheguei aqui. Órfão da realidade, qual natureza morta que em virtude dos sucessivos restauros se metamorfoseou em retrato, entrei na universidade dos ponteiros, entregando-me ao curso dos acontecimentos disposto a enfrentar com estoicismo as consequências dos tiquetaques.
Principiava um sufocante interrogatório. Mas quem poderia respirar aqui? Quantas mutações até alcançar o meu verdadeiro nome? É condenável transformar um cenário de guerra num salão de bailes? Será que desejo, como Alexandre, o Grande, o mundo inteiro? “E nem um palmo a menos do que o mundo.”
Desde então esta é a minha morada.

Com é óbvio, tudo isto deve ser interpretado à vossa maneira.
A vossa cabeça mobilará as lacunas do texto fazendo de mim um vilão ou um herói, estropiará as metáforas, esvaziará a altura, espezinhará os múltiplos sentidos, amesquinhará os pormenores em notas de rodapé. Viver dependente das interpretações hostis não é fácil; deixamo-nos levar pelos juízos flutuantes e saltitantes e quando damos conta estamos a condenar à guilhotina santos com obra feita.

Pois é isto: a estupidez não conhece obstáculo, eis a atleta-mor, melhor dizendo, a vontade de esfrangalhar o outro supera tudo. A lacuna no teu discurso será a tua vala — cogita o censor. Desde então tenho pesado as minhas palavras como quem trafica a mais valiosa das drogas.

Após umas semanas a reflectir numa travessa de marisco, agarrado a uma sapateira bolorenta, ensaiando o tango do tédio, consolidei a minha posição: a fúria de viver regressava vagarosamente às minhas veias. A cólera transfigurou-me num animal albino e quilométrico. Alea jacta est.

Entrementes, vasculhava, não de cócoras mas de pé, o mundo à procura de fragmentos de luz, pequenos nacos carcomidos de um deus antigo, um rudimento de um paraíso vetusto. O perfume da rosa fora sepultado na folha. Enformado desleixadamente em poema. Desafortunadamente, incapaz de me transportar pelo leito do delírio até ao passado, a arte viu-se submetida à métrica do literal. O verso tornado sarcófago do perfume. Sem a rota do perfume, vemo-nos agrilhoados ao presente.

Quando as exigências da carne afrouxam, quando o desejo aligeira a necessidade de alvo específico e se espraia como o Outono nas folhas verdes, abandona os ídolos, torna-se iconoclasta e regressa às leis da fome primeva. Não há uma única frase nas nossas conversas que não tenha já sido proferida centenas de vezes. Gaguejamos de nariz empinado citações de autores caídos no esquecimento. Sem poesia, a palavra orbita segundo a trajectória do eco.
Um átomo de novidade na ponta da língua: eis o labor do poeta. Face à bancarrota do coração, afigura-se-me uma guerra sem feridos.

Sem vida, fechado num sem-número de cárceres, foi da imaginação que o Homem gerou a sua autobiografia luxuriante. Nem Deus nos pode expulsar do paraíso da imaginação.

Paraíso da Imaginação, Roberto Gamito

 

 


Roberto Gamito

01.08.21

Mónia Camacho - Tertúlia de Mentirosos

Mónia Camacho. Escritora.
 
Deambulámos por uma enormidade de temas, a saber: a escolha do título, a personalidade química do ser humano, Uma só volta do sol, o pacto entre o livro e o leitor, o fragmento, o primeiro livro, os escritores e as redes sociais, o amor enquanto base da civilização, a dor enquanto escola, a visão literal e a barbárie, a chusma de rainhas de copas, imaginação, medo e impotência. 
 
Mónia Camacho nas redes sociais: https://www.facebook.com/monia.camacho
 
Podem ouvir o episódio aqui ou noutra plataforma de podcast.
 

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