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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

24.08.21

Ao contrário de todas as expectativas, a vida brotou neste planeta antigamente estéril. Tudo terá começado como um projecto modesto, uma tentativa sem grandes perspectivas, um daqueles cursos que se faz para não estar parado, um passatempo entre trabalhos sérios, a fim de ver no que dá. Ainda hoje ignoramos se pelas mãos do Acaso, se pelas mãos de Deus. Encetou-se a experiência com umas bactérias, uns fungos, de seguida uns líquenes. A vida ia ganhando confiança em si mesmo e ia testando formas inéditas, intrincando-se, criando alianças, simbioses. Não havia razão para a competição. Socalco a socalco, o mundo foi povoado pelo milagre. Depois surgiram as plantas, que prontamente se aliaram aos seus pais, os fungos. Do mar vieram os primeiros povoadores da terra. Aventuram-se para além do mundo conhecido. Talvez um parente da iguana das Galápagos. É incrível como a vida pôde florescer num mundo tão rude. Nada estava a favor da vida: mesmo assim ela prosperou. Viver é uma prova de resistência. Foi-o desde o princípio. A vida singrou aonde não a esperavam. Não será essa vida, uma vida que rompe do deserto sem cunhas, o sinónimo de amor?

Na Tanzânia, nas árvores, os colobos, uns macacos com uma pelagem preta e branca, recentemente tiveram de se adaptar a uma realidade nova. De tanto viver suspenso entre a terra e o céu, esse apeadeiro tenso como a corda de um funâmbulo, observa-se o mundo de maneira diferente. Recordo-me do barão trepador, de Italo Calvino. Quem fica muito tempo nas alturas tem uma vista privilegiada e tudo lhe parece pequeno. Nos últimos anos, as antigas árvores, a antiga floresta, foi dando lugar a plantações de chá. Vê-los no meio do chá a fitar os homens absortos na colheita, eles, os colobos, que nunca viram os homens, é de partir o coração. Não percebem o que lhes aconteceu — claro, corremos sempre o risco de humanizar e o colobo terá direito, como é óbvio, à sua singular e inescrutável interpretação da sua nova situação. A forma como o colobo grita indicia a autoridade que tem sobre o território. O grito deste singular macaco foi-se subtilizando até aos nossos dias: hoje chama-se poder.

O colobo é um macaco do mundo antigo, e a floresta onde viveu já não é útil aos homens. Em breve, tudo o que natureza dá, lenta e ineficazmente, será visto como um empecilho. Em breve, os animais selvagens não terão mais para onde ir a não ser migrar para o território inóspito da culpa humana. Não adianta avançar ou recuar, fugir ou enfrentar, todos os caminhos vão dar à extinção. Afortunadamente, os colobos ignoram que estão entre a espada e a parede, e podem fruir daquela imagem de uma nova espécie de macacos, os homens, a colher chá num sítio onde até há pouco tempo havia árvores com dezenas de metros.

Na Amazónia, recensearam-se, até ao momento, 16 mil espécies de árvores. A biodiversidade na maior floresta do planeta é um hino no qual concorrem todas as cores e sons. Certamente um dos maiores orgulhos do Criador, seja ele quem for. Sem as árvores, as cataratas de Iguaçu, no Brasil, não existiriam. Um dos mais grandiosos espectáculos produzidos pela natureza: há milhares, se não milhões de anos que a peça não sai de cena. Sem as cataratas de Iguaçu, deixará de haver o andorinhão-velho, uma ave que nidifica nas cataratas para se proteger dos predadores. Permitam-me que cite uma frase que vi num documentário sobre florestas: “a água como a vida nunca pára a meio caminho”. Se a água parar, a vida pára com ela, eis uma ideia que podemos retirar.
Mas abrandemos um pouco, respiremos fundo, tentemos uma última vez reatar a nossa relação com a natureza, não falar com os espíritos de todas as coisas, rios, árvores, e animais, como um antigo xamã, mas olhar para tudo o que se passa à nossa volta: como um pequeno orangotango.

Terá sido provavelmente a mudança mais drástica da história da vida. Deixou a água e voltou-se para o céu. Primeiro veio o sonho, depois um plano seguido esforçadamente ao longo de milhões de anos de evolução. Entretanto, tiveram que se tornar mais ágeis e mais leves. As primeiras aves contentaram-se com o facto de serem desajeitadas, de avançar aos pulos. A confiança foi crescendo ao longo de milhões de anos até que alguns deram o salto determinante — o voo. Voar dava acesso a povoar o novo mundo. Esta é a história dos pássaros. Muito parecida com a dos homens, parece-me.

Abandonemos por instantes o andorinhão-velho, e voltemos o holofote do nosso desassossego em direcção às flores. Foram elas, e não os poetas ou homens inspirados pela paixão, que inventaram a sedução. Precisavam urgentemente de prosperar. As flores queriam atrair todo o tipo de bichos: os que voam, os que rastejam, ou os que andam. Em suma: manipular os polinizadores para atingir os seus fins. Vistas dessa ideia, as flores já não parecem tão santas. À medida que os olhos dos animais se aperfeiçoaram, as flores viram-no, e o viram aqui pode ou não levar aspas, arriscaram tudo e jogaram o trunfo: a sedução. Um mundo até então quase monocromático deu lugar a um festival de cores e cheiros. Ei-las, as flores, as pioneiras na sedução.

Na caverna Chauvet-Pont d’ara, no sul da França, podemos observar pinturas rupestres com mais de 30 mil anos. Naquela altura o homem não se desenhava a si próprio, desenhava os outros seres vivos. Parece abissal a diferença entre a arte primitiva, vamos utilizar este termo não ignorando o perigo que acarreta neste caso, e a nossa, em que tudo gira à volta do nosso ego, do eu narcótico em que o outro, a aparecer, surge desfocado. Era o início dos inícios. O homem tinha todas as perguntas e nenhuma das respostas. Talvez não tenhamos avançado muito mais, embora a nossa arrogância venha em nosso socorro a fim de o desmentir. O homem primitivo colmatou os vazios com a arte, a cultura, os rudimentos da religião. À falta de verdade, e não sabendo lidar com o vazio, o homem teve uma ideia luminosa, talvez a maior de sempre: inventar histórias. A ficção para fazer as vezes do silêncio da resposta que teima em não aparecer.

Antigamente, o homem negociava tudo com os espíritos. A relação para com a natureza era de dívida. De lá para cá, a relação do homem com a vida transformou-se profundamente. E provavelmente irreversivelmente. A relação passou de mística, para económica. Já não há tempo para negociar com espíritos a próxima presa, a próxima refeição. O novo Deus, o dinheiro, quer tudo cada vez mais rápido, cada vez mais rentável. E o diálogo atrasa.

Um terço da superfície mundial foi consagrado à agricultura e não é preciso ser catastrofista profissional para prognosticar que o cenário vai piorar. As florestas tropicais estão a desaparecer a um ritmo alucinante. O progresso queima tudo à sua passagem. Por toda a África, a floresta do Congo é um bom exemplo disso, a área destinada à vida selvagem decresce. O que sobra é mantido a muito custo. Reservas diminutas mantidas graças à caça que, garantem-nos, visa regular o número de animais até este atingir o ideal, sendo que o ideal é uma palavra larga que alberga todos os interesses. São espécies que estão presas por arames, dependendo inteiramente dos caprichos dos turistas.

A cada dia que passa, nascem 400 mil humanos e morrem 160 mil. Todos os dias são mais 240 mil bocas para alimentar na Terra. Estas são as contas que Deus faz na toalha do restaurante antes de nos dizer o preço da vida. Ninguém quer, à partida, queimar a floresta— porém também ninguém deseja ter fome. Entre a conversão da floresta em terreno agrícola e a fome passeiam-se todos os interesses. Nós vivemos uma mentira. Ao pé desta, Deus, que até pode existir, é uma brincadeira inócua de criança. A economia cresce atrás de um crescimento perpétuo. Uma ideia suicida.
Nenhum sistema fechado pode crescer indefinidamente, assevera-nos a ciência. É só uma questão de tempo até dar buraco. O dinheiro chicoteia-nos com a ordem: mais depressa, mais lucro. Tudo o que não é susceptível de ser convertido em dinheiro é um empecilho. O diálogo é um estorvo. Lutamos sem esperanças de sairmos vitoriosos contra o que criamos. A sede de dinheiro. Queremos mais, queremos sempre mais. E já nem nos importa como.

Coloquemos de lado a Amazónia por momentos. O corno de rinoceronte vale mais que ouro. No mercado negro, cada quilograma vale cerca de 50 000 euros. Quanto mais rinocerontes matar, mais o caçador ilegal ganhará. Ao torná-lo mais raro, mais posso pedir pelo corno, cogitará o caçador ilegal. Do ponto de vista do caçador ilegal, a proximidade da extinção de um animal é o melhor que lhe pode acontecer. Especula sem escrúpulos sobre a vida. Avancemos agora para Chittagong, no Bangladesh. Chittagong parece um pesadelo. Corrijo: Chittagong é um pesadelo. A meu ver, parece-me os bastidores do progresso, sendo que a peça já foi a palco e foi um fracasso. Chittagong é um dos maiores estaleiros de demolição de navios do mundo. Homens franzinos de mãos nuas empurram com cordas pedaços de um colosso em fim de vida. Não se paga quase nada a estes homens. E eles, muitas vezes, pagam com a vida. Quando vejo imagens sobre Chittagong tenho a sensação perturbadora de presenciar não apenas o lado obscuro do progresso, uma realidade local e distante da nossa, mas um vislumbre vívido do nosso futuro enquanto espécie.

Finalmente, o assunto que me levou a escrever esta crónica. Os fogos na floresta amazónica. Por muito que doa, não podemos desviar o olhar, é a altura de a espécie se mostrar adulta, não nos podemos habituar nunca a este tipo de catástrofe. Bolsonaro que, tal como Trump, se imunizou ao escândalo, disse que enviaria quarenta homens para combater o fogo. Uma anedota. Contudo, às vezes basta um Homem para apagar o fogo. Mas um Homem raro. Um que esteja disposto a dar a vida pela liberdade. Talvez não seja descabido relembrar um naco de prosa de autoria de Timothy Snyder, o qual pode ser encontrado no seu livro Sobre a Tirania:
“Repelir os factos é repelir a liberdade. Se nada é verdadeiro, então ninguém poderá lançar críticas ao poder, pois não existe fundamento algum que possa servir esse propósito. Se nada é verdade, então tudo é espectáculo.”

23 de Agosto de 2019

 

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Roberto Gamito

26.03.21

O terramoto a horas certas. O declive sumário onde se morre sem gorduras, sem palavras a mais. A trajectória excêntrica do cursor pelas redes sociais desaponta o miolo, que se reforma.

A paisagem desfigura-se: o pintor não tem ilusões sobre isso.
Já não há possibilidade de fitarmos o mundo com essa visão pura, por assim dizer, original. Resta-nos surripiar as legendas de quadros pretéritos e com eles fabricar a nossa enfadonha biografia.

E no entanto, o momento em que franzimos a testa vale bem a pena: voltamos a ver, como das outras vezes, que nos falta algo.

Que caminhos temos de calcorrear a fim de criar e experienciar outros estados de visão? Abeiramo-nos do mundo, sem saber o que dizer e encetamos a visão pelo toque, pelo cheiro e de seguida o costume. Repentinamente, a paisagem, outrora mansa, esmaga-nos. Não temos nenhuma intervenção sobre o que nos agrilhoa.

O que eu peço ao leitor é que tenha em conta a singularidade da proposta: um gesto sem nome nem propósito, uma mão de mestre anónimo escapando-se dessa turbamulta de mãos que se acotovelam pela luz mínima dos holofotes da fama. A minha fruição não se esgota com o fracasso nem com a vitória. Um gesto que simultaneamente cria e destrói para deixar tudo na mesma. Números nada mais do que números, dirão uns ou outros. Mas regressemos à pose.

Naturalmente, muitos nomes deliciavam-me. Segundo o meu modesto parecer, o maior legado deixado pelos romanos. Primeiro e talvez fiquemos por aqui no tocante à enumeração, o jovem monge, num assomo de Meursault, puxa fogo ao mosteiro. Nos arredores desse mosteiro belo, magnificado pelo fogo, (à beira da ruína tudo se torna mais belo) o jovem Buda principia a imolação em pose de lótus. Os monges do mosteiro entregue ao guloso incêndio fugiam como animais com as mãos na face, sem gritar, dado que não queriam quebrar o voto de silêncio. Pequenos quadros ambulantes, procissão absurda, caso haja vontade de etiquetar a cena.

Nada me poderá dar maior felicidade do que a ideia de vos fazer pensar, e se possível, num cenário propício à meditação: não um mosteiro, mas numa sanita. E se possível com o cu a arder.

Incêndio no Mosteiro, Roberto Gamito

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