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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

10.06.21

As festas para crianças são uma espécie de tortura vanguardista excepcionalmente cruel. As vítimas — os adultos — não podem chorar nem gritar, enquanto os carrascos — os putinhos — riem a bom rir. Não fosse o álcool e essas festas seriam palco de suicídio colectivo. Suspeito que até o mais fervoroso crente é capaz de concordar com esta ideia: “Deus está em toda a parte, excepto em festas de crianças”.

Quem são os palhaços nessas festas? Um palhaço que se dedica a estes certames de catraios é uma figura triste. Estudou para ser um digno palhaço de circo, sonhava com a vida de nómada durante a qual saltava de cidade em cidade, porém teve de se contentar em tentar — ênfase no tentar — divertir putinhos ranhosos. Além disso, há putos que os detestam. Que vida degradante é essa? Actuar para um público que nos despreza ou odeia. Creio que faz falta um documentário centrado nestas figuras destroçadas pelos carniceiros pequenotes.

Mas não nos esqueçamos dos infantários. O que é um infantário senão um manicómio para seres humanos em miniatura? A prova de que o infantário é um local destinado a acolher pequenos maluquinhos é a farpela. Vestem-lhes bibes para que se distingam das pessoas sãs (até ver), os educadores de infância.

Os pais acham que os filhos adoram sopa. Ignoro de onde retiraram isso. De certeza que não recolheram dados no terreno, até parece que não têm filhos. Os putos fazem o que lhes compete, comunicar dentro das suas possibilidades o facto de detestarem sopa. A criança faz tombar o prato no chão, desperdiça a sopa que lhe põem na boca e, se tudo falhar, vomita. Qual é a reacção do pai a este teatro? O meu filho adora sopa. Enfim, nunca convidem pais para jogos de mímica.

Quando o filho é pequeno, os pais estão em negação. O bebé borra-se nas cuecas, vomita, arrota como um bárbaro profissional e chega mesmo a andar de tronco nu numa pastelaria. Como resposta a isso tudo, os pais dizem sem réstia de vergonha: “Estou muito orgulhoso”. Já que aqui estamos, aproveito para vos perguntar uma questiúncula que tanto me apoquenta: até que idade podemos dizer que sentimos orgulho em alguém que defeca enquanto está à mesa? O orgulho só faz sentido se os pais tiverem prisão de ventre e não conseguirem esconder a inveja em relação ao filho cagão.

O mundo está como está porque ninguém tem coragem de entrar nos infantários e gritar: “Vocês, putinhos do caralho, são uns merdas. Achei por bem avisar-vos, os vossos pais não podiam continuar a enganar-vos. Um resto de uma boa tarde. Podem continuar com as vossas brincadeiras.”

Há uma altura em que os pais vigiam os filhos 24 horas por dia. São como que seguranças não remunerados da celebridade em miniatura. O seu trabalho é evitar que os putos se metam em alhadas, a saber: partir coisas, levantar saias a mulheres, tombar garrafas, entre outras coisas que por norma associamos a vândalos. Num mundo justo, as cadeias estariam apinhadas de putinhos.

A vida de universitário, se ajudada pelo álcool, é uma segunda infância. Regressamos às quedas, aos balbucios e aos vómitos.

Por favor, não me contem as façanhas das vossa crias. Nem hoje, nem amanhã. Nem nunca. Vamos lá ver se a gente se entende de uma vez por todas: eu não leio biografias de gente interessante e agora vou perder tempo a ouvir as proezas de caca dos vossos rebentos?! Repara, diz a mãe, o meu filho pronunciou o seu primeiro monossílabo. O que posso responder numa altura dessas? Fico muito feliz por vocês, riposto eu a morrer por dentro, se o vosso filho quiser já pode criar uma música brasileira.
Não me macem com os conseguimentos dos vossos filhotes, a menos que ele tenha entrado à socapa na mansão da Playboy e tenha passado a noite a saltitar de teta em teta.

“O meu filho entende tudo, é muito inteligente!” Sim, aos 5 anos já percebe tudo, até que os pais são uns pacóvios.
Calma, acho precipitado ver genialidade num animalzinho que pouco mais faz que rir e cuja obra está reunida, não em volumes, mas em fraldas. Ou: “o meu filho é tão inteligente, olha para ele a mexer no tablet”. De seguida, o putinho levanta-se, desata a correr e dá uma cabeçada na televisão. Como se fosse um pardal. Eis o vosso Einstein.

Os putos são altamente permeáveis àquilo que ouvem. É como ter um papagaio novinho em folha. Com uma diferença substancial: regra geral, os pais não querem que a primeira palavra do putinho seja cona — o que para mim é incompreensível.

Apontamentos sobre os putinhos, Roberto Gamito

 


Roberto Gamito

21.03.21

Tanto quanto me recordo, a primeira vez que comi bife com batatas fritas foi uma experiência encantadora. A minha pequenez de tamanho e de vida tinham alcançado uma das suas primeiras certezas: isto é bom, quero mais. Deve ter sido aí que comecei a amar a carne. E, pouco a pouco, ganhei-lhe uma intimidade que fez dela, da carne, principalmente do frango, objecto de fascínio e desafio ao faro. Mas não foi o frango que nos trouxe cá.

Entendo perfeitamente a frivolidade de cavaquear sobre bifes com batatas fritas, parece que, além da sua estrita função de nos encher a pança, não há nada a comunicar sobre eles a não ser reconhecer-lhes o lugar de destaque no prato, os quais, acompanhados pelas antigas amigas, as batatas fritas, formam um dos quadros mais belos criados pelo Homem. A alegria esfuziante de um catraio que descobre, de supetão, que afinal a sopa deu lugar a um repasto digno de um rei, é digna de figurar numa ode. Sem grande surpresa posso confessar que fui educado segundo a doutrina da carne: se te portares bem, há bife com batatas fritas. Correu bem, até ver não assassinei ninguém nem sequer cometi delitos pequenitos.

Aos poucos, e à medida que a minha esfera vocabular se ia expandindo, principiei a adorar o bife com novo fôlego: agradava-me o cheiro, as respeitáveis dimensões não me eram indiferentes (tanto que, anos mais tarde, fazia questão de pugnar, qual bárbaro, pelo maior bife) e, questão importante, se era fácil de cortar.
Sempre desprezei sem peias as crianças que se negavam a cortar o bife. Que heresia! Era mandá-los para fogueira. Muito do prazer do petisco está no acto de cortar bocados à medida da nossa fome.

Ao mesmo tempo que o bife espicaçava a minha imaginação e ia ganhando terreno nos meus sonhos, apareceu um novo personagem. O ovo estrelado. Um dia, estava já munido de faca e garfo pronto a estraçalhar mais uma vítima fumegante, quando me disseram: “Espera, vou pôr um ovo em cima do bife”. A princípio desconfiei, nunca gostei de mudanças, mas cedi, pensei: os adultos deviam saber mais de pitéus do que uma criança de joelhos esfolados. Com efeito, aceitar que poisassem um ovo em cima do meu bife foi das melhores decisões em toda a minha vida. Doravante não logro imaginar os bifes sem o seu fiel companheiro, o ovo. Não consigo esconder o sorriso sempre que ouço a expressão “bife com ovo a cavalo”. Em criança, imaginava o bife como cavalo e o ovo como jóquei. Do alto da minha fome, fitava, ababalhado, o prato e imaginava estórias. Roberto, o gigante catraio, devora cavalo e jóquei, enquanto o público, as batatas, aplaudem a carnificina.

E ao longo destes milhares de encontros, esses sucessivos negócios, se preferirem parlapié de adulto, construímos uma relação sólida. Obrigado, bife com batatas fritas. Obrigado, ovo. Já provei outros pratos, mas regresso sempre onde fui feliz.

 

Bife com batatas fritas, Roberto Gamito

 

 

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