Roberto Gamito
10.01.22
De qualquer perspectiva imparcial, tenha ou não existido com poderes dignos de figurar nos filmes da Marvel, Jesus é reconhecido por crentes e incréus como tipo porreiro. Jesus, como mensageiro do amor, tornou-se uma figura excepcionalmente popular e hoje é o ponta-de-lança da religião com mais adeptos.
Versátil, pronto a curar leprosos e erigir pequenos e grandes Lázaros de ataúdes, Cristo foi amealhando simpatias graças à cinética dos alegados milagres. Nos bastidores desses episódios — e isso fá-lo palpavelmente humano — foi enceleirando detractores mais ou menos subtis.
Para citar Lotário di Segni, isto é, o Papa Inocêncio III, todos os seres humanos são Job. É uma bela ponte entre o filho de Deus e o Homem. Dou-me conta da ousadia. Discorremos sobre Jesus, como se não houvesse séculos a separar-nos. Eis-me retratista do quase impossível.
Ingressarmos nas questões de Deus constitui um laboratório no qual, a partir de uma vaga inquietude, se destilam várias espécies de gritos. Para lá de todos os precipícios, encontra-se uma vontade primitiva de dar nome a essa luz que não cessa.
A meio da queda, com o auxílio in extremis do Altíssimo, o Homem adquire asas que o afastam, por momentos, da morte. Até quando?, questiona o mais impaciente.
Segundo o crente pacificado com o silêncio, encontrarmo-nos com Deus é um relaxamento face à ideia de morte. Para lá de toda a trivialidade, para lá de todas as cacofonias que enformam o nosso parlapié de futuro defunto, há uma migalha com ânsias de germinar, hábil em iluminar o nosso humilde caminho.
Em jeito de súmula, o Homem aproxima-se de Deus porque procura domesticar o que lhe foge. O problema não reside em acreditar ou não acreditar, mas sim na consequência nefasta do narcisismo galopante. Nas palavras de Peter Sloterdijk, ao deixar de pôr Deus acima de todas as coisas, o Homem ingénuo ou ganancioso, semelhantemente a Satã, escolhe-se a si mesmo como o seu objecto de eleição. E eis a queda.
Abandonemos a esfera da queda, quase não exige esforço desmontar a pose ficticiamente vertical do homem contemporâneo. Depois de Deus, a verticalidade é uma fabricação suspeita, engendrada por hipócritas que se pavoneiam em frente a uma turba de ingénuos.
Detenhamo-nos por um momento em histórias paralelas, uma das quais engendradas por Judeus. Há uma história apócrifa — que é como quem diz, rumor — segundo a qual Jesus é filho de um soldado chamado Pantera — belo nome —, resultando daí que Maria era uma espécie de prostituta disponível nas pausas dos eventos bélicos.
Só há duas formas de estar na vida, dois estilos diametralmente opostos: 1) passar por tudo, 2) prescindir de tudo.
O jejum do coração e do cérebro, quanto a mim, não me parece escolha saudável. Afastarmo-nos cinicamente das coisas não me parece a coreografia certa — é antes uma arma romba da sapiência contemporânea. O cínico olímpico cai na esparrela de florear a seguinte ideia: tudo é outra coisa, tudo o que vejo é pretexto para outra coisa. Têm predilecção por polemizar tudo aquilo que tocam. Afadigam-se na teorização da jornada e do cerco. Fazem de tudo para não dar um passo em frente. O cinismo, de facto, é porta-voz da ruína interior. Entronizam-se venenos a fim de dar consistência ao nosso desnorte, eis a criatividade pós-queda.
A palavra, doença ou terapia tartamudeada por outro, encontra-se hoje numa situação frágil. Tanto pode repelir como aproximar dois estrangeiros. Gaguejada não pode constituir promessa alguma, ao passo que se vier categórica é-nos suspeita.
A paixão, o amor, amizade, por assim dizer, nessas províncias de difícil acesso ao homem contemporâneo, carecem de itinerários fixos. Falar é importante, abrirmos o coração é indispensável, pôr o miolo em canção é necessário. Tudo isto para andar às voltas do dito Agostiniano: “A recompensa da confissão é que quem diz a verdade chega à verdade.” Longe do domínio senhorial do umbigo, habitar essa verdade é passar a dor a limpo, purificá-la e fazer as pazes com o passado.
Mas estaremos nós a pensar bem? Deixarmo-nos inundar pelas palavras de Deus conduzir-nos-á a um sítio melhor? A tensão intelectual associada à resposta começa a desaparecer, dado que não pode ser articulada em palavras. Mas regressemos a Jesus, será ele um representante imaculado do Amor?
Com efeito, Jesus foi alvo, ao longo das eras, de sucessivos retoques enaltecedores claramente tendenciosos. Fizemo-lo crescer em luz com os restos da realidade e exagerámo-lo como quem não tem escapatória senão a hipérbole.
Jesus. (João 2:4)
“O que tem isso que ver contigo, mulher?”, deixa com a qual cortou a palavra à Mãe, Maria, nas bodas de Caná.
Não me parece que tenha ficado muito bem na fotografia.
De um ponto de vista embriagador, uma das questões mais decisivas, presente no livro de Lucas. Outra vez Jesus:
“Julgais que vim para estabelecer a paz na terra?”
E por último, não me recordo o livro:
“Se alguém vem ter comigo e não odeia o seu pai, a sua mãe, a sua mulher, os seus filhos, os seus irmãos, as suas irmãs e até a sua própria vida, não consegue ser meu discípulo.”
Dá ideia de que o amor ficou para segundo plano.
Neste ponto, a distância temporal é mãe de todas as interpretações. O Homem lá foi tentando suavizar a postura de Jesus com contratextos, porém a dúvida persiste. Em todo o caso, há sempre a hipótese de nos tornarmos outro. Com ou sem auxílio divino, a metamorfose continua alcançável.
“Em toda a parte se encontra um Jordão.”