Roberto Gamito
19.11.20
Levantamos a cabeça do atoleiro, eis o ápice do heroísmo. A verdade não pode ser pronunciada senão a gaguejar, escoltada por lágrimas e em pose de derrotado. As verdadeiras confissões são arrancadas in extremis, quando as máscaras deram provas da sua ineficácia. Espanta-me que hoje a verdade se faça acompanhar pela propaganda da clareza, da jactância e da confiança. A verdade, caros colegas de atoleiro, situa-se nos antípodas da empáfia.
Soltas as primeiras lágrimas, não preciso de nenhum apoio, nem de nenhum encorajamento; de joelhos sou um animal sem arabescos: por muito derrotado que esteja, chegou a minha hora de falar. Atingido esse patamar de despojamento, pomos em discurso as nossas ruínas (— cada frase — um animal espantadiço —; cada crença — um muro esboroado; cada amor falhado — uma mina colapsada), esse labirinto por onde nos fomos perdendo, dia após dia, sem entrever saída, pese embora à superfície nos abraçássemos a um norte postiço.
Transformamo-nos naqueles que outrora criticámos. Manada embrutecida, a qual trabalha sem deleite nem porquê, dado que descortinar a resposta poderia dinamitar o sistema, daí a velocidade galopante que nos tentam impingir em todas as veias. O que é a vida senão aquela cena do filme de Roy Andersson, Canções do Segundo Andar, em que chegamos com a carrinha de caixa aberta e despejamos uma pilha de crucifixos, que é como quem diz, crenças. A nossa pequena contribuição para a descrença colectiva, esfalfamo-nos para que o outro nos veja como criatura sem cruz, desagrilhoada da luz — a mais sinistra das ilusões. Vingar-nos-emos, então, de todos os deuses, grandes e pequenos, reais e fictícios, mortos e por nascer. Empilhamos os nossos fracassos num momento nulo e estéril, eis a nossa cruz, pensamos nós, no entulho.
Que desperdício de energia tão alheio a qualquer mudança. Livramo-nos do artifício, adiamos a metamorfose.