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Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.

Fino Recorte

Havia uma frase catita mas que, por razões de força maior, não pôde comparecer. Faz de conta que isto é um blog de comédia.


Roberto Gamito

23.10.22

Usualmente, não temos o menor interesse pela conversa do outro, seja esse outro quem for. Não queremos saber como lhe correu o dia, nem a semana, nem tão-pouco um resumo dos melhores momentos da década. Com a excepção dos cenários em que o engate tenta singrar até à cama, ninguém está minimamente disponível para escutar o outro. Infelizmente, poucos são os que, no início de uma conversa que se afigura longa e entediante, possuem a coragem para verbalizar “Não tenho o menor interesse nas tuas palavras. Hoje já ouvi demasiadas frases no trabalho, careço de cabeça para mais. Gostaria de estar em silêncio, espero que me compreendas”.
 
Todavia há fragmentos de conversa que espicaçam o morto em que nos fomos tornando, a saber: “Tenho de começar a ler.”
Antes de mais, é uma intenção pertencente à família “tenho de começar a ir ao ginásio”. Segundo me contaram, começar a ler, isto é, pegar num livro com intenção de ir além da capa, não requer um esforço sobre-humano. Deslocamo-nos a uma livraria, pegamos num livro, que nem precisa ser dos melhores, um franzino para começar não é mau, compramo-lo ou roubamo-lo, abrimo-lo, começamos na primeira linha e vamos, com pausas ou sem elas, até à última. Parece-me um exercício ao alcance do mais humilde dos Homens.
 
O que impede o Homem de ler? Será que levou a cabo um pacto demoníaco em que uma das alíneas era a impossibilidade de pegar num livro? Faz sentido, o diabo esconde-se nos detalhes e não quer ser surpreendido.
Como as pessoas mais vividas saberão, esse tipo de intenção é uma forma encapotada de exibir a culpa. A pessoa em questão sente-se culpada, crê que devia ler mais, porém nunca irá dar o passo em frente para remediar. Pertence à mesma casta daquelas pessoas que, verbalizando a sua vontade de escrever, perguntam em jeito de acrescento: Como começar?
Esse tipo de perguntas guardam em si já a resposta. Ou é de caras ou é impossível explicar. Alguém que pergunta como começar não pretende começar a escrever, está tão-somente a enganar-se a ele próprio. O mesmo sucede com o tipo que, confrontado com alguém que lê, declara: "Tenho de ler mais".
Não vais, não enganas ninguém.
 
Nisto, recordo-me que, em média, o português lê um livro por ano. Se calhar equivoquei-me, fui precipitado. Provavelmente o nosso país está repleto de pessoas que concretizam “tenho de começar a ler”. No entanto, ficam-se sempre pelo primeiro livro. E a cada ano que passa é como se tentassem novamente, porém não logram ultrapassar esse gigante que é o livro isolado.
 

Tenho de começar a ler


Roberto Gamito

19.03.22

O nosso século está prenhe de armadilhas graças às sobras do pós-modernismo. O pós-modernismo aplicado é o epitáfio prolixo de um cérebro colectivo que já nos deu muitas alegrias. A par do capitalismo, o pós-modernismo está tão entranhado no dia-a-dia que nem nos apercebemos dos estragos. A sua prole de nomes mutantes é grande e crescente, politicamente correcto, cultura woke, evangelho do cancelamento, paladinos do literal e por aí vai. Encetemos a crónica pelos quatro temas do pós-modernismo: 1) o desvanecimento de fronteiras, 2) o poder da linguagem, 3) o relativismo cultural, 4) o desaparecimento do individual e do universal.
Parece de loucos, mas é verdade.

Não deixa de ser curioso os séculos de luta contra a superstição travada pela razão, seja na forma de ciência ou arte, para de repente voltarmos ao mesmo sítio, não obstante os nomes dos personagens serem outros. A atitude excessivamente céptica do pós-modernista é um tiro no pé do intelectual postiço — tão céptica que não acredita na verdade ou no conhecimento objectivo. Grosso modo, nada é real, excepto a opressão. O pós-modernismo acredita que tudo é corrompido por políticos ou homens de poder, até o próprio conhecimento. Que género de pessoas são portadoras da mesma lengalenga? Exacto, os negacionistas ou amigos das Teorias da Conspiração.
Iluminados numa idade de trevas, pertencendo a uma casta à parte apesar de cilindrarem a ideia de casta, são woke — estão, segundo eles, acordados. A injustiça sistémica acorda. Eis uma desculpa para quando chegarmos tarde ao trabalho: o despertador da injustiça sistémica não tocou, ao que o patrão ripostará: não passas de um colaborador privilegiado.

A descrença no objectivo oferece palco a teorias de lunáticos.
Na melhor das hipóteses, actua como uma camisa-de-forças na liberdade de expressão, dado que cada palavra é escrutinada até à náusea. Na pior das hipóteses, citando Helen Pluckrose e James Lindsay, trata-se de uma forma mal-intencionada de intimidação e, quando institucionalizada, representa uma forma de totalitarismo.

Cada frase é conduzida para uma câmara de desvirtuamento e problematização. Durante este processo a frase inócua transforma-se na principal causa da humanidade estar como está. É como uma mulher estrangeira atravessar uma rua pejada de velhas à janela: entra pura e sai puta.

A crença de que a sociedade é composta por sistemas de poder e hierarquias que decidem o que pode ser conhecido e como — esperem lá, estamos a falar de académicos ou de loucos das teorias das conspiração? De facto, esticando a corda ao limite, podemos entender o pós-modernismo aplicado como uma teoria da conspiração nascida no meio académico. Há uma diferença que torna o pós-modernismo aplicado na maior teoria da conspiração de todas: não há conspiradores, uma vez que não existem atores reais a puxar os cordelinhos. A consequência é um hiperactivismo pessimista ou delirante que se ocupa a desconstruir e a problematizar tudo o que mexe. O seu niilismo galopante transforma o diálogo num alimento impróprio para consumo.
Num mundo excessivamente fluído, desconstruir e construir são sinónimos.

Nesta era de espaços seguros, piadas almofadadas e sorrisos amarelos, estou céptico perante estes novos cépticos que descobriram nas metanarrativas uma nova espécie de holofote. Que é como quem diz, privilégio.

Sou oprimido, logo existo


Roberto Gamito

04.11.21

Luís Carmelo, Tertúlia de Mentirosos

Luís Carmelo. Escritor.

Deambulámos por uma enormidade de temas, a saber: livros e livros diluídos, o leitor é um animal em vias de extinção?, verticalidade dinamitada e horizontalidade pós-moderna, Gnaisse, clássicos e livros novos, metáfora e o salto, pensamento nómada, o jornalismo e as redes sociais, um mundo sem memória nem futuro, literatura portuguesa e o humor, o humor envelhece mal?, universalidade e a tentação de responder à própria época, experiências da intensidade.

Podem ouvir o episódio aqui ou noutra plataforma de podcast.

 

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