Roberto Gamito
04.07.22
Desloquei-me da sala até ao frigorífico. Estava bom tempo; lá fora chovia. Levei apenas uma muda de roupa, a que tinha no corpo. Umas calças de pijama com uns flocos de neve, oferecido pela minha avó, e um casaco velho da nike vermelho a dar as últimas, nada de muito vistoso, se excluirmos o plano do ridículo. Viajei como um indigente. Queria evitar os olhares curiosos dos autóctones, leia-se família: só o que me faltava era ser assaltado com perguntas a caminho do frigorífico. A viagem foi rápida mas sentida, não deu para tirar fotografias, nem para actualizar redes sociais, nem para ouvir a nossa música preferida que escutamos somente quando vamos de viagem. Tentei viajar o mais incognitamente possível. Detive-me numa estação de serviço apenas — a minha casa de banho. Fiz aquilo que as pessoas normais fazem nas casas de banho. Aliviado, rumei em direcção ao frigorífico. Era tal qual a imagem que eu guardara na memória. Talvez um pouco menos brilhante, com uma mancha de ferrugem aqui e ali, que os fotógrafos de merdas a cair aos pedaços achariam engraçado fotografar a preto e branco. No centro da cozinha, uma mesa encimada por uma fruteira, a escassos metros o frigorífico. Fitei a fruteira, só fruta. Afaguei um pêssego. Não, não era fruta que me apetecia. Respirei fundo e abri o frigorífico. É sempre uma surpresa. Em verdade, regresso sempre ao frigorífico, é a minha Paris. Já fui feliz, já fui triste. Pilhei-o segundo os ditames da minha fome. Dois rissóis, um de camarão e outro de leitão, este último com uma ferida por cicatrizar, com sangue de rissol a escorrer-lhe da dita, um iogurte líquido com dois sabores, caramba, não há a porra de um iogurte líquido com apenas um sabor, uma linguiça, um naco de presunto, um trecho de queijo... Um bocado de repolho — não, isso ficou. Eu sei que pode parecer exagerado, mas é melhor prevenir, evitamos viagens desnecessárias. Era tempo de voltar. Fui com o saque até à sala. O meu irmão olhou-me fixamente e disse: “Trouxeste alguma coisa para mim?” Ao que eu respondi "Não trouxe lembranças para ninguém.” E enchi o bandulho.